Quando um cliente de plano de saúde
acha que precisa de atendimento imediato, ele corre para o
pronto-socorro. A carteirinha na mão é, ao mesmo tempo, solução e
problema. Garante acesso a um médico (qualquer que seja ele), mas
expõe o beneficiário ao que existe de pior no ambiente hospitalar.
Nas salas de espera lotadas, vírus e bactérias saltam dos doentes
para os que não deveriam estar ali. O chá de cadeira costuma
resultar em uma conversa apressada entre um paciente e um médico
que nunca se viram. Nesse meio de cultura brotam as prescrições
inadequadas e os pedidos de exame desnecessários. Não importa onde
dói. Está cada vez mais difícil sair de um pronto-socorro sem
fazer, ao menos, uma escala na sala de raios X. Isso é bom para
quem?
Pode ser bom para os hospitais, que
vivem de vender procedimentos, mas é péssimo para todos os outros
envolvidos: os planos de saúde (ameaçados pelas altas taxas de
sinistralidade), os empregadores (atormentados pelo aumento dos
custos dos convênios) e, principalmente, os pacientes (que perdem
dinheiro e saúde). O pronto-socorro só deveria ser procurado em
caso de urgência (acidentes, fraturas etc.) ou de emergência
(hemorragias, parada cardíaca, entre outras situações graves). Por
mais que as pessoas saibam disso, muitas recorrem ao hospital
porque a maioria dos planos de saúde não oferece outra forma de
atendimento imediato. O que faz uma mãe quando chega tarde do
trabalho e encontra o filho com febre e reclamando de uma dor
esquisita? Se não conseguir contato com o pediatra ou não se sentir
segura com a resposta dele, ela correrá para o pronto-socorro mais
próximo. Poderia ser diferente se as operadoras investissem em
formas inteligentes de manter a saúde dos beneficiários por mais
tempo, em vez de apenas reclamar do aumento dos custos provocado
pelo uso irracional dos convênios.
Para mudar a cultura predominante na
saúde suplementar, não é preciso reinventar a roda. Depois de
estudar exemplos de sucesso no exterior, alguns planos de saúde
começam a oferecer serviços baseados na boa e velha estratégia dos
médicos de família. O cliente é convidado a se inscrever em uma
unidade de coordenação de cuidado e passa a ser acompanhado sempre
pela mesma equipe (médico, enfermeiro e agente de enfermagem).
Depois da inscrição, o acesso é livre. O paciente recebe a garantia
de atendimento no mesmo dia ou até no dia seguinte, sempre que
precisar. Além de consultas, as unidades realizam acompanhamento
nutricional, exames laboratoriais, curativos e pequenos
procedimentos.
>> Como baixar o custo da saúde
Se algum problema surgir tarde da
noite ou aos finais de semana, o cliente liga para um celular com
atendimento 24 horas por dia e fala com um dos agentes de
enfermagem de plantão. Ele acessa o prontuário do paciente, ouve as
queixas e o orienta sobre o que fazer. E, se for caso de
pronto-socorro, o encaminha. Segundo a dona de casa Vanderlisse dos
Santos Moreira da Silva, de 62 anos, esse roteiro não é apenas um
protocolo de boas intenções. “Funciona de verdade”, diz. Ela
aceitou o convite da operadora Amil para se inscrever em um dos
chamados Clube Vida de Saúde, em São Paulo. A participação
não é obrigatória. Caso não tivesse interesse, ela poderia
continuar usando a rede credenciada (médicos, hospitais etc.) como
sempre fez. Graças à mudança na forma de acompanhamento, a paciente
notou claros benefícios: a artrose nos joelhos melhorou, assim como
o controle do diabetes e da hipertensão. No início do tratamento,
tomava 15 medicamentos por dia. Hoje, são nove. “Como a consulta é
mais demorada, eu me sinto à vontade para falar a respeito de tudo.
A equipe pergunta sobre meus parentes e me trata como se eu fosse
de casa.”
>> Planos de saúde e hospitais: eles brigam e nós
perdemos
Não é apenas por gentileza que os
profissionais procuram se inteirar sobre as relações pessoais e
sobre o ambiente que cerca o paciente. Conhecer essa matéria-prima
é fundamental para a criação de estratégias com chance de sucesso.
A enfermeira Danielle Machado Lopes conhece até a escolha dos
personagens da festa de aniversário da neta e da bisneta de
Vanderlisse. “Sei onde ela mora, sei dos filhos que vivem na
Irlanda, sei do que ela gosta, o que ela faz e das dificuldades que
enfrenta”, diz. Por saber que a paciente passa vários meses por ano
no exterior, a equipe procura adaptar a dieta e a atividade física
para que Vanderlisse não abandone o desafio de perder peso. “Ela
havia feito várias dietas, mas só conseguiu emagrecer quando sentiu
que estávamos sempre por perto. Construir esses vínculos é o que me
atrai nesta profissão”, diz a médica de família Amanda do Val
Anderi.
Cerca de 80% dos casos atendidos por médicos de família são
resolvidos sem a necessidade de outros especialistas
O investimento da operadora nos
centros de atenção primária foi inspirado nos modelos do Reino
Unido e de outras nações reconhecidas pela qualidade na assistência
à saúde. “Estamos fazendo o que dá certo nesses países”, diz
Gustavo Gusso, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de
Família e Comunidade. “Lá, as unidades de atendimento são privadas,
mas o financiamento é público. Adotamos a mesma estratégia, mas
quem paga é a operadora.” Professor de medicina de família que
trabalhou no Sistema Único de Saúde (SUS) até 2011, Gusso torrou um
apartamento em viagens ao exterior para estudar prontuários e
conhecer as entranhas dos melhores sistemas de saúde. Foi
contratado pela Amil com a encomenda de montar um bom projeto de
atenção primária. “Nosso objetivo não é dificultar o acesso a
outros recursos, e sim fazer o que precisa ser feito.
Queremos garantir sustentabilidade para que os empregadores não
precisem mudar de plano a cada dois anos”, diz. Os médicos não
recebem por consulta. Eles são remunerados para cuidar de um grupo
fechado de pacientes e são cobrados pelos resultados.
Segundo o Ministério da Saúde, cerca
de 80% dos casos atendidos em consultório por médicos de família
são resolvidos sem a necessidade de encaminhamento para outros
especialistas. Com 18 milhões de clientes em todo o Brasil, a
Unimed identificou melhorias no acompanhamento da saúde dos 200 mil
pacientes que aderiram aos programas de atenção primária desde
2011. Em Belo Horizonte, a operadora lançou um tipo de plano que
não permite o acesso direto dos pacientes aos especialistas. O
cliente fica vinculado a um médico de referência que avalia a
necessidade de encaminhamento. Em uma amostra de 935 indivíduos
seguidos durante seis meses, a operadora observou que a proporção
de consultas de urgência em pronto-socorro caiu de 34% para 20%.
“No início, enfrentamos resistência dos clientes e dos
profissionais”, diz Orestes Pullin, presidente da Unimed do Brasil.
O receio dos pacientes é que o discurso da melhoria no
acompanhamento se torne, na prática, uma barreira de acesso aos
recursos mais caros. É uma preocupação justificável diante do
histórico de negativas de cobertura que marca a relação entre as
operadoras e seus clientes. O corretor de seguros Paulo Roberto
Martins Soares, de 65 anos, não é de se impressionar facilmente com
a qualidade de serviços prestados pelas empresas. “Sou chato, mas
estou maravilhado com o atendimento do meu médico de referência”,
diz. Em março, ele sofreu um infarto e foi rapidamente atendido por
Marcos Almeida Quintão, da Unimed de Belo Horizonte. O médico
de família acompanhou a internação e foi visitá-lo várias vezes.
“Agora tenho acompanhamento de verdade”, diz Soares. A clínica
funciona das 7 horas da manhã às 9 da noite. Fora desse horário, os
pacientes falam com os profissionais por telefone e mensagens.
“Isso não substitui uma consulta, mas a pessoa precisa sentir que
pode contar com uma opinião de confiança a qualquer momento”,
afirma Quintão.
>> Você confia no médico que recebe presentes da
indústria?
>> Os falsos doentes de R$ 9,5 milhões
Valorizar a atenção primária é uma
urgência, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). “A
lógica atual é centrada em procedimentos, e não no paciente.
Precisamos de um modelo mais cuidador”, afirma Karla Coelho,
diretora de Normas e Habilitação dos Produtos da ANS. A agência
identificou cinco operadoras com experiência de atenção primária no
Brasil: Amil, Unimed, Clinipan, Medplan e Silvestre. É pouco. Para
estimular a expansão dos projetos, a agência, em parceria com a
Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), vai premiar as melhores
iniciativas até o final do ano e fazer oficinas para que outras
operadoras se inspirem. “Quando o cliente experimenta esse tipo de
atendimento, ele não quer mais voltar para o que tinha antes”, diz
Karla. A cultura de mau uso dos recursos médicos precisa mudar. Não
só porque é insustentável, mas, principalmente, porque ela faz mal
à saúde.