Comissão
da Câmara dos Deputados deve votar nesta quarta-feira projeto de
lei que cria barreiras para usuários e favorece empresas.
Mais garantias para empresas e burocracias a mais para usuários.
Esse é o espírito geral da proposta em discussão na Câmara dos
Deputados que muda as regras para os planos de saúde, na avaliação
da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
O substitutivo do relator, deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) ao
PL 7419/2006, deve ser votado nesta quarta-feira (8) em uma
comissão especial sobre o tema. Como tramita em regime de urgência,
o texto não poderá ter pedido de vista, ou seja, para adiar a
votação no colegiado. Se for aprovado, segue para o plenário da
Casa, onde é uma das prioridades do presidente da
Câmara, Rodrigo Maia(DEM-RJ).
Para José Sestelo, vice-presidente da Abrasco, a proposta que
atende a interesses empresariais e dificulta o atendimento aos
usuários junto com o teto de gastos públicos, que limita recursos
para o SUS (Sistema Único de Saúde), pode levar a uma grave crise
no País.
De acordo com a proposta, juízes terão de consultar um
profissional da saúde antes de obrigar a operadora a prestar o
atendimento que havia negado ao beneficiário, com exceção de casos
emergenciais. Quanto a próteses, órteses e equipamentos especiais,
a operadora indicará três modelos. Hoje é definido direto pelo
médico.
Outra alteração determinante para usuários na a última faixa
etária, de 59 anos ou mais, é que o reajuste será dividido em cinco
parcelas, pagas quando o beneficiário completar 59, 64, 69, 74 e 79
anos de idade. A lei atual proíbe aumento a partir dos 60 anos.
Na avaliação da Abrasco, as mudanças aumentam a burocracia e
podem prejudicar o atendimento. A proposta também é criticada pelo
Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). A estimativa é
que há no Brasil 47,6 milhões de
consumidores de planos de assistência médico-hospitalar
individuais, familiares e coletivos.
O lado das operadoras
Para as empresas, as principais mudanças são multas mais brandas
e redução das garantias patrimoniais exigidas. As multas passarão a
ser proporcionais à infração cometida e limitadas a dez vezes o
valor do procedimento questionado. Hoje o valor varia de R$ 5 mil a
R$ 1 milhão. Em 2016, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar)
aplicou R$ 1,27 bilhão em multas às
operadoras.
O faturamento das operadoras de planos de saúde aumentou 12,8%,
para R$ 158,3 bilhões, em 2016. Os custos, por sua vez, cresceram
14,4% para R$ 125,5 bilhões, segundo dados da ANS. O setor encerrou
o ano passado com lucro de R$ 6,2 bilhões, o que representa um
crescimento de 70,6% quando comparado a 2015.
O parecer reúne o conteúdo de 150 propostas em tramitação na
Câmara. De acordo com Sestelo, em geral, o objetivo dos projetos de
lei era ampliar os direitos dos consumidores. Já o parecer de
Marinho é no sentido oposto. O tucano também foi relator da reforma
trabalhista, que contemplou demandas empresariais.
A discussão acontece em paralelo às declarações do ministro da
Saúde, Ricardo Barros, de defesa da redução do SUS e a favor
dos chamados planos de saúde populares. Deputado federal licenciado
do PP, ele teve como principal doador da campanha Elon Gomes de
Almeida, sócio do Grupo Aliança, administradora de benefícios de
saúde, que disponibilizou R$ 100 mil para o então candidato. Além
disso, o presidente da comissão, deputado Hiran Gonçalves é do
mesmo partido e estado (Paraná) do ministro.
Confira os principais trechos da entrevista de José Sestelo.
HuffPost Brasil: Se for aprovada, quais serão os
principais impactos da proposta que muda regras de planos de
saúde?
José Sestelo: Quando o ministro [da Saúde]
Ricardo Barros assumiu, ele criou um grupo de trabalho no
Ministério da Saúde para sugerir propostas de mudanças e
implantação dos chamados planos populares. Esse grupo depois foi
transferido para a ANS, a Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Fez audiências públicas e ao final criou um relatório.
Mas em paralelo a isso, na Câmara, houve uma iniciativa de criar
uma comissão especial para rever a lei dos planos de saúde que
seguiu seu trâmite em regime de urgência. Criticamos muito isso
porque não entendemos o porquê da urgência. Ele apensou diversos
projetos sobre planos de saúde. Esses projetos, em geral, eram
iniciativas que visavam ampliar os direitos dos consumidores e não
restringir.
Durante os trabalhos da comissão, o relator reuniu todos esses
projetos e produziu um relatório francamente favorável aos
interesses das empresas. Praticamente todos os projetos de lei em
tramitação na Câmara deixaram de existir.
Essa discussão tem um impacto a longo prazo, já que, além
da proposta atual restringir direitos do usuário, acaba com
projetos no sentido contrário?
Exatamente. É uma estratégia política que limpou a pauta da
Câmara desses diversos projetos e produziu uma nova realidade que,
na prática, é a revogação da Lei 9656, que regulamenta os planos de
saúde. Vai voltar, praticamente, à situação antes de 1998, quando
as empresas tinham uma liberdade muito maior de atuação e isso
gerava problemas de reclamações, negação de cobertura. Foi um dos
motivos, inclusive, que deu origem à criação da lei.
O relatório propõe que o
reembolso das operadoras ao SUS seja direto para os municípios e
estados em vez de para o Fundo Nacional de Saúde. Essa medida pode
agilizar repasses para os entes que, em geral, têm menos
recursos?
Nós temos hoje a chamada dupla porta. Tem hospitais ou
instituições assistenciais que atendem simultaneamente o SUS,
particulares e clientes de planos de saúde. Na prática, essas
unidades acabam dando preferência a clientes de empresas e
particulares, embora legalmente isso não seja permitido.
Com esse pagamento no balcão, ou seja, esse ressarcimento direto
ao ente federativo local, seja município ou estado, o receio é isso
que acabe induzindo, na rede assistencial, mais ainda do que
existe, uma preferência por clientes das empresas e particulares.
Isso iria restringir ainda mais a oferta de leitos para clientes do
SUS.
Também pode dificultar a fiscalização...
Claro. Vai pulverizar. E não sabemos a situação. São cinco mil
municípios. O objetivo do ressarcimento pelo fundo centralizado não
é garantir dinheiro para financiar o SUS. É um mecanismos porque as
empresas quando fazem um contrato com os clientes, elas cobram por
essa assistência.
Digamos que você tenha um plano de saúde e sofra um acidente e
vá para um hospital público, fica uma semana na UTI. Quem paga é o
SUS, mas a empresa cobrou por isso no contrato. Não é o paciente
que sai ganhando. É a empresa que sai ganhando porque ela cobra e
quem paga é o orçamento público. O ressarcimento é apenas um
mecanismo de correção dessa injustiça.
Uma demanda das empresas são o custo alto para mais
velhos. Mas a Abrasco afirma que o parcelamento do reajuste para
faixa etária de 59 anos viola o Estatuto do Idoso. De que forma?
Qual será o impacto dessa medida?
O estatuto estabelece um limite que a partir de determinada
idade os usuários de planos de saúde não pode sofrer reajuste
porque do ponto de vista das empresas não tem interesse no paciente
idoso. Tem interesse em quem vai usar pouco e tem capacidade
contributiva, então fazem um cálculo atuarial. O valor da prestação
é distribuído pelas diversas faixas etárias para cobrir os custos e
ter lucro.
Essa mudança é só uma forma de assustar menos essa clientela
mais idosa porque quando você faz 59 anos muda de patamar e o plano
passa a custar muito mais caro. Eles vão continuar cobrando a mesma
coisa, mas vão espalhar mais depois dos 60 anos.
O que nós gostaríamos é que houvesse mais transparência em
relação aos custos porque é uma caixa preta. As empresas cobram o
que querem e ninguém tem condições de dizer se estão cobrando muito
ou pouco.
A maioria dos contratos são empresariais, então a ANS não regula
esses reajustes. Quem determina é a própria empresa e ela quem
recebe esse aumento. O que queremos é transparência porque se é um
serviço de relevância pública, é preciso que essas informações
sejam públicas.
O relatório traz algumas medidas que protegem as empresas,
mas colocam barreiras a alguns serviços. Por exemplo, juízes terão
de consultar um profissional de saúde antes de obrigar a operadora
a prestar o atendimento que havia negado. No caso de próteses e
órteses, a operadora irá indicar três modelos ao médico, que hoje
escolhe o aparelho sozinho. Essas normas podem atrasar
tratamentos?
Essa burocratização do acesso ao atendimento faz parte de ação
rotineira das empresas de negação de cobertura. Estudo feito no
Tribunal de Justiça em São Paulo mostra que a negação de cobertura
e procedimentos cirúrgicos tem crescido.
Isso já foi incorporado como uma estratégia das empresas de
economizar. Isso reduz despesas no curto prazo, ainda que seja
questionável judicialmente. Tudo isso tem que ser entendido dentro
dessa lógica.
As empresas estão tentando também criar câmaras técnicas nos
tribunais para subsidiar decisões dos juízes, mas temos receio que
essas câmara obedeçam à visão das empresas.
E a questão das órteses e próteses, a gente sabe que existe uma
articulação entre fabricante, distribuidores, prestadores e
intermediários, que são as empresas. Acho que o objetivo é chegar a
um acordo que garanta as margens [de lucro] para todos dessa cadeia
de valor e o cliente, obviamente, ficaria prejudicado.
As alterações como multas mais brandas e a redução das
garantias patrimoniais exigidas das empresas do setor tem como
objetivo uma ajuda financeira às operadoras?
Isso está ligado a um fenômeno estrutural chamado
financeirização que está tomando conta da economia como um todo e
dessas empresas de planos de saúde em particular. A rigor são
empresas não financeiras. Não são bancos nem seguradoras.
Entretanto, elas têm apresentado nos últimos anos um aumento do
lucro financeiro. Elas têm o lucro operacional, baseado na
atividade administrativa de intermediação da assistência, e por
cima disso têm o lucro financeiro cada vez maior.
Até então empresas não podiam usar imóveis como ativos
garantidores porque não têm liquidez. Não podem ser vendidos
rapidamente. Então se a empresa falir, a ideia da ANS até agora é
que ela precisa ter ativos líquidos, disponíveis de forma imediata,
para que o interventor possa pagar as dívidas com os fornecedores e
com os clientes.
Quando diminuem as garantias, o patrimônio das empresas vai
estar disponível para fazer mais aplicações financeiras de risco e
isso reduz a segurança. Em caso de falência, não haverá meios
imediatos para pagar os credores. Ou seja, é um risco sistêmico que
está sendo colocado.
A escolha do relator, ligado ao setor empresarial e
relator também da reforma trabalhista, também é um indicativo da
intenção da proposta?
O relator, do ponto de vista ideológico, é completamente
alinhado com a visão das empresas. Como também o próprio governo e
o próprio ministro.
O ministro Ricardo Barros defende que se houver mais
usuários de planos de saúde mais básicos, o SUS será desafogado e
concentrará a oferta em tratamentos mais complexos...
É uma afirmação completamente falaciosa e eu gostaria que ele
apresentasse os fundamentos. Esse argumento foi apresentado pela
primeira vez em 1972, num congresso da Abramge [Associação
Brasileira de Planos de Saúde], como forma de legitimar as
empresas. Naquele momento, elas não tinham a legitimidade
institucional que têm hoje. Estavam querendo se apresentar como
algo de relevância pública, de interesse público e apresentaram
esse argumento quando nem havia o SUS.
Desde então, esse argumento tem sido repetido de forma acrítica
e agora mais uma vez, o atual governo e mesmo alguns sanitaristas,
repetem isso sem se dar conta de que ele não faz o menor sentido.
De 1972 para cá só aumentou o número de pessoas que têm plano de
saúde e isso melhorou a assistência pública em que? O que a gente
tem visto é justamente o contrário.
Você tem uma quantidade de recursos que ficam imobilizados. Quem
tem plano de saúde tem acesso a quatro vezes mais recursos
assistenciais, em média, do que quem não tem. E isso é uma parcela
de 25% da população. Um quarto da população tem acesso privativo a
quatro vezes mais recursos do que o conjunto da população porque
quem tem plano de saúde continua podendo usar o SUS, mas o
contrário não é verdade.
De modo geral então o projeto em
discussão na Câmara contempla os interesses das empresas, mas deixa
de lado o interesse público do serviço dos planos de
saúde?
As alterações que estão sendo feitas
na lei são amplamente favoráveis aos interesses das empresas e o
interesse público que a gente entende é dos clientes. As pessoas
vão ter mais dificuldade. Olha só o que está acontecendo: as
pessoas idosas são expulsas dos planos de saúde por barreiras
pecuniárias. O plano fica tão caro que não conseguem pagar. Quando
têm filho ou alguém da família que podem ajudar, elas têm sorte e a
família vai montar um esquema para viabilizar.
Mas quem não tem vai recorrer ao
sistema público e o SUS com esse congelamento por 20 anos do
orçamento, a tendência é sucatear com o passar dos anos. A classe
média não terá nem plano de saúde nem SUS. Isso porque o plano de
saúde bom vai ser caro, difícil de pagar, o plano barato vai ser
insuficiente e o sistema público estará sucateado. Então no médio
e, talvez no curto prazo, teremos uma crise sanitária, uma crise
assistencial de proporções gigantescas. Esse é o nosso receio.
Se o projeto de lei for
aprovado, a Abrasco irá entrar com alguma ação judicial?
Estamos na expectativa na Câmara.
Ainda esperamos que os deputados rejeitem. Estamos nos mobilizando
para isso, politicamente. Mas não sabemos o que vai acontecer. Se a
passar a mudança na lei, vamos avaliar qual seria a medida mais
adequada para tomar.