Dos nove pacientes que morreram,
seis estavam no grupo que tomou hidroxicloroquina e azitromicina.
Dois estavam no grupo que não ingeriu as medicações. Há um paciente
cuja tabela não informa se ingeriu ou não a medicação.
Houve,
portanto, pelo menos o
dobro de mortes entre os participantes que tomaram
cloroquina. Para preservar as identidades, a reportagem vai
mencionar apenas as iniciais, o sexo e a idade dos que
morreram.
Grupo que tomou cloroquina:
- H. S., 79 anos, sexo
feminino;
- H. M. P., 85 anos, sexo masculino;
- J. A. L., 62 anos, sexo masculino;
- R. A. V., 83 anos, sexo masculino;
- M. C. O., 70 anos, sexo feminino;
- F. S., 82 anos, sexo masculino.
Grupo que não tomou cloroquina:
- H. H. K., 68 anos, sexo masculino;
- L. F. R. A., 82 anos, sexo feminino,
Sem informações se ingeriu ou não cloroquina:
- D. L., 66 anos, sexo
masculino.
Bolsonaro postou sobre estudo
O primeiro documento relativo ao
estudo foi um pré-print divulgado em 15 de abril de 2020. Os
pré-prints são a primeira versão de uma pesquisa e precisam ser
revisados por outros cientistas independentes.
No artigo, o coordenador do
estudo, o cardiologista Rodrigo Esper, diretor da Prevent Senior,
menciona a ocorrência de apenas duas mortes no grupo que usou as
medicações. Os óbitos, segundo o artigo, foram provocados por
outras doenças, sem relação com o coronavírus ou com as
medicações.
“Não houve efeitos colaterais
graves em pacientes tratados com hidroxicloroquina mais
azitromicina. Dois pacientes do grupo de tratamento morreram
durante o acompanhamento; a primeira morte foi devido à síndrome
coronariana aguda e a segunda morte devido a câncer
metastático.”
Não há, no entanto, entre as
vítimas ninguém com as
doenças mencionadas pelos coordenadores.
Três dias depois, em 18 de
abril, o presidente Jair Bolsonaro fez uma postagem no Twitter
sobre o estudo. Citando a Prevent Senior, menciona a ocorrência de
cinco mortes entre os pacientes do estudo que não tomaram
cloroquina e nenhum óbito entre os que ingeriram as medicações.
Segundo o
CEO Fernando Parrillo, a Prevent Senior reduziu de 14 para 7 dias o
tempo de uso de respiradores e divulgou hoje, às 1h40 da manhã, o
complemento de um levantamento clínico feito: de um grupo de 636
pacientes acompanhados pelos médicos, 224 NÃO fizeram uso da
HIDROXICLOROQUINA. Destes, 12 foram hospitalizados e 5 faleceram.
Já dos 412 que optaram pelo medicamento, somente 8 foram internados
e, além de não serem entubados, o número de óbitos foi ZERO. O
estudo completo será publicado em breve!”, escreveu
Bolsonaro.
Orientação dada a pesquisadores
No mesmo dia 19 de abril, Esper
postou uma mensagem de áudio no grupo de pesquisadores do estudo
para orientá-los quanto à revisão dos dados dos pacientes. Ou seja,
quatro dias depois da publicação do artigo científico com os
resultados, estes mesmos resultados ainda não haviam sido
revisados.
No áudio, Esper cita a mensagem
do presidente sobre o estudo. Acrescenta, ainda, que os dados
precisam ser "assertivos", "perfeitos", para que não haja
contestação. E finaliza, argumentando que esse estudo vai "mudar o
curso da medicina".
“Oi pessoal, tudo bem? É o Esper
falando, tá, eu tô aqui com o (Fernando) Oikawa. Seguinte, a gente
precisa revisar esses dados no máximo até amanhã, de todos os
pacientes, então botei mais força aqui no grupo. Esses dados, são
os dados... a gente tá revisando todos os 636 pacientes do estudo.
Já tem mais ou menos uns 140 revisados, mas a gente precisa fazer a
força-tarefa pra acabar isso amanhã. Só que a gente precisa olhar
tudo. Se teve eletro (eletrocardiograma) ou não, se teve alteração
no intervalo QT ou não, se fez swab pra Covid sim ou não. Então
vamos programar uma live hoje, às 17h, com todos aqui desse
grupo... O Fernandão (Oikawa) vai mandar o link aqui e aí a gente
vai estabelecer os critérios e a gente vai pensar na tabela,
estabelecer os critérios, e todos vão coletar os dados, e aí com
umas seis pessoas, aí dá tipo 100 pacientes pra cada um, nem que a
gente coloque mais gente aqui. O Fernando vai recrutar pelo menos
mais dois colegas para colocar, pode ser essa colega aí do
pronto-socorro, mas o dado precisa ser assertivo e perfeito porque
o mundo tá olhando pra gente, tá? Esses dados vão mudar a
trajetória da medicina nos próximos meses aí no mundo, tá bom? O
(microbiologista francês) Didier Raoult, eu entrei em contato com
ele ontem, ele citou o nosso trabalho no Twitter, eu respondi ele,
e então a gente precisa ser perfeito, o dado, tá? Até o presidente
da República citou a gente. Esse áudio tem que ficar aqui, não pode
sair. Então, vamos reunir às cinco horas hoje, numa
videoconferência, todos, pra gente ajustar os parafusos e todo
mundo falar a mesma língua e ter um levantamento perfeito do dado.
Obrigado.”
O cientista francês Didier
Raoult coordenou um dos primeiros estudos no mundo sobre a
cloroquina. Inicialmente, segundo os autores, a pesquisa teria
indicado a eficácia da cloroquina para reduzir internações por
Covid, mas o levantamento foi muito questionado pela comunidade
científica.
O próprio Raoult, meses depois,
veio a público dizer que seu estudo não é capaz de indicar a
eficácia da medicação.
O resultado do estudo da Prevent
foi divulgado dias depois que outro estudo semelhante, realizado em
Manaus, foi suspenso em razão da morte de pacientes que ingeriram
cloroquina. A pesquisa também não encontrou evidências da eficácia
da medicação.
Outro estudo
iniciado na época envolveu algumas das principais instituições de
saúde do país, como os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês,
mas a conclusão também foi de que a cloroquina não é eficaz contra
a Covid. Restou, portanto, apenas o estudo da Prevent.
A análise da planilha dos
pacientes do estudo mostra que, dos 636 participantes, apenas 266
fizeram eletrocardiograma, que é recomendado para pacientes
tratados com cloroquina, pelo risco de problemas cardíacos. Uma das
pessoas que morreu, um homem de 83 anos, tomou cloroquina e
apresentou arritmia cardíaca, que é um dos efeitos colaterais
possíveis da medicação.
Além disso, apenas 93 pacientes
(14,7% do total) realizaram teste para saber se estavam com Covid
ou não. Foram 62 casos positivos, menos de 10% do total de
participantes.
Comissão de ética suspendeu pesquisa
O estudo chegou a ser submetido
à Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e aprovado, mas o
órgão suspendeu a pesquisa por constatar que a investigação começou
a ser feita antes da aprovação legal.
Até hoje, no entanto, o estudo é
usado pela própria Prevent Senior para justificar a prescrição da
cloroquina aos seus associados. Ao longo da CPI, foram várias as
menções.
Subnotificação de mortes por Covid
Além das suspeitas que recaem
sobre o estudo, há indícios de que a operadora subnotificou mortes
por Covid ocorridas em suas unidades.
A GloboNews conversou com outra médica que
trabalhou na Prevent e afirmou que essa prática tem ocorrido desde
julho de 2020.
Em uma mensagem enviada a grupos
de aplicativos, outro diretor da Prevent determina aos
coordenadores das unidades que alterem o código de diagnóstico
(CID) dos pacientes que deram entrada com Covid-19 após
algumas semanas de internação.
“Após 14 dias do início dos
sintomas (pacientes de enfermaria/apto) ou 21 dias (pacientes com
passagem em UTI/Leito híbrido), o CID deve ser modificado para
qualquer outro exceto o B34.2 (código da Covid-19) para que
possamos identificar os pacientes que já não tem mais necessidade
de isolamento. Início imediato.”
A justificativa é viabilizar o
isolamento dos pacientes, mas a alteração do CID, segundo a médica,
faz com que o diagnóstico de Covid desapareça de um eventual
registro de óbito.
A GloboNews conseguiu comprovar dois casos
em que a Covid foi omitida da declaração de óbito dos pacientes. O
primeiro deles é de um homem que foi internado em novembro de 2020
na unidade da Prevent Senior do Itaim, Zona Sul da capital
paulista. Ao dar entrada no hospital, o exame PCR deu positivo para
Covid.
Os médicos, então, prescreveram
as medicações do chamado kit Covid, como cloroquina, ivermectina e
azitromicina. Ele já havia ingerido essas medicações antes mesmo de
ser internado e voltou a recebê-las no hospital. Também foi
submetido a cerca de 20 sessões de ozonioterapia.
Segundo a Conep, a ozonioterapia
só pode ser feita em pesquisas experimentais por instituições
credenciadas. O órgão informou que a Prevent não está
credenciada.
O paciente ficou dois meses
internado e morreu após ter uma hemorragia digestiva. A Covid,
doença que desencadeou a morte, foi omitida da declaração de óbito
dele.
O outro caso é de uma paciente
que também morreu após ficar internada na Prevent Senior para
tratar um quadro de Covid. Ela recebeu as medicações do kit Covid,
mas o quadro não melhorou. Na declaração de óbito, a Covid também
foi omitida.
A Prevent
Senior é investigada desde março pelo Ministério Público de São
Paulo, que abriu um inquérito civil após uma reportagem
da GloboNews mostrar 12 relatos de
associados do plano que estavam recebendo o kit covid. Parte deles
nem sequer tinha diagnóstico confirmado de Covid-19.
Em abril, outra reportagem
da GloboNews trouxe relatos
de médicos que trabalharam na operadora. Eles disseram que
foram coagidos a prescrever os remédios do kit covid e que foram
forçados a trabalhar enquanto estavam infectados com o novo
coronavírus. Tudo isso foi incluído na investigação da
promotoria.
O MP também investiga o uso de
medicações sem eficácia comprovada, como flutamida, etanercepte,
heparina inalatória e ozonioterapia. DHPP (Departamento de
Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo) e ANS
(Agência Nacional de Saúde Suplementar) também abriram
investigações.
A reportagem teve acesso a uma
página usada como guia por médicos da área de telemedicina da
Prevent. A página contém uma planilha atualizada com os nomes dos
pacientes e as medicações recebidas.
É possível ver que a cloroquina
e a ivermectina continuam sendo prescritas mesmo após o Ministério
da Saúde ter declarado que o medicamento não funciona, o próprio
ministro Marcelo Queiroga ter desaconselhado o uso das medicações e
depois de estudos amplos de meta-análise indicarem que a cloroquina
pode provocar um aumento das mortes de pacientes, e não a
redução.
O mesmo guia ainda mostra que a
Prevent Senior continua testando outras duas medicações nos
pacientes. A bicalutamida, um inibidor de hormônios masculinos,
contraindicado para mulheres, e a chamada “Pílula do Açaí”.
A CPI da Covid recebeu já
denúncias formais que afirmam que a operadora de saúde e o governo
federal fizeram um acordo, no início da pandemia do coronavírus,
para testar e disseminar as medicações do kit covid.
O documento cita uma série de
irregularidades que, segundo os médicos, foram praticadas pela
empresa, e reveladas
pela GloboNews e o G1 em abril deste
ano. O
Ministério Público abriu investigação.
A Prevent Senior afirmou, por
meio de nota, que sempre atuou "dentro dos parâmetros
éticos" (leia mais abaixo).
O primeiro desdobramento do
acordo entre a Prevent e governo federal, segundo a denúncia, foi a
pesquisa feita com mais de 600 pacientes para testar a eficácia da
hidroxicloroquina contra a Covid-19, realizada entre março e abril
do ano passado. O
resultado teria sido manipulado para que os resultados fossem
favoráveis ao uso da cloroquina contra a doença.
A denúncia afirma ainda que a
Prevent realizou uma série de tratamentos experimentais em seus
pacientes, muitas vezes sem que houvesse consentimento deles. O
texto diz que pacientes
foram usados como "cobaias humanas" para testar
medicações contra a Covid.
Em nota, a Prevent diz que
"sempre atuou dentro dos parâmetros éticos e legais e, sobretudo,
com muito respeito aos beneficiários. Todas as dúvidas e
questionamentos formulados pela CPI foram devidamente esclarecidos
junto às autoridades competentes".
O que diz a Prevent Senior
Em nota, a operadora negou e
repudiou as denúncias, e disse que está tomando medidas para
investigar quem, segundo a empresa, "está tentando desgastar a
imagem da Prevent Senior".
Disse ainda que os médicos
sempre tiveram a autonomia respeitada, e que atuam com afinco para
salvar milhares de vidas.
A empresa reiterou que os
números à disposição da CPI demonstram que a taxa de mortalidade
entre pacientes de Covid-19 atendidos por seus profissionais de
saúde é inferior as demais.