As escrituras das chamadas ‘uniões
poliafetivas’ que foram lavradas em dois Tabelionatos de Notas em
São Paulo, por sinal pela mesma Notária (na cidade de Tupã e quando
foi transferida para a cidade de São Vicente), e em mais um
Tabelionato de Notas no Rio de Janeiro, ganharam repercussão
mundial.
Se o nosso país estivesse citado nos
principais jornais de todo o mundo como um país onde se respeita a
família e a lei, onde o Tabelião de Notas cumpre a lei por ter fé
pública, estaríamos todos felizes.
Mas, como não poderia deixar de ser,
diante da lavratura de escrituras públicas de união entre três
pessoas como união estável, os noticiários dos países ocidentais
realizaram comentários pejorativos, com as seguinte manchete no
jornal francês Le Monde: “O Deus Tupã cria o ‘ménage
à trois’ no Brasil” (aqui).
E, em outra notícia, como se o nosso Brasil fosse uma “piada”, foi
dito no mesmo jornal: “No Brasil um ménage a trois entre garotas
engraçadas” (aqui).
Em outros jornais, como The
Telegraph do Reino Unido, que destacou a seguinte
notícia: “Três Pessoas entram na união civil (estável) no
Brasil” (aqui) e La
Stampa, da Itália, sob o título “Foi celebrado o primeiro
matrimônio a três” (aqui),
o Brasil foi exposto como o país que, embora tenha o pilar da
monogamia, admite a poligamia em forma de casamento, ou seja, o
mesmo país do “ménage à trois” que foi referido no Jornal francês
acima citado.
Afinal, se num país onde a monogamia
vigora no plano constitucional, admite-se que um Tabelião de Notas
atribua a uma relação poligâmica a natureza de família com os
respectivos efeitos, isto significa que o Brasil é o país da
“bagunça”.
E no jornal espanhol El
Pais foi dito que “Três noivas desafiam o modelo de
família tradicional brasileiro” (aqui).
Informando, ainda, que esse trio declarou na escritura pública que
tem a intenção de que os filhos havidos por uma delas sejam filhos
das 3, assim contemplados nas respectivas certidões de
nascimento.
É evidente que não poderiam deixar de
ocorrer na imprensa mundial essas referências desastrosas ao nosso
país, diante de escrituras públicas que foram lavradas por duas
Tabeliãs de Notas, que, como todos os Cartórios Notariais, têm fé
pública, ou seja, confiabilidade social.
A fé pública de um Notário é assim em
todo o mundo.
A fé pública do Notário presume que
esteja cumprindo a lei ao lavrar uma escritura. Assim, acreditaram
fora do Brasil, que essas escrituras teriam validade, como se fosse
um casamento ou uma união estável.
Aqui no Brasil, o Tabelião de Notas
também tem a fé pública, mas as duas Tabeliãs de Notas, que
lavraram essas escrituras entre um homem e duas mulheres e entre
três mulheres, violaram e descumpriram gravemente a lei.
Isso porque declararam que a união
poliafetiva teria natureza de família, que essas pessoas estariam
constituindo uma entidade familiar, com direitos entre as partes e
perante terceiros, como o INSS e outros entes públicos, assim como
em relação a entes particulares, como planos de saúde e clubes
desportivos.
Essas escrituras não só declararam que
três pessoas vivem juntas, atribuíram a essas pessoas direitos de
família, sucessórios e previdenciários, entre outros, que não
existem no Direito brasileiro.
Assim, declararam que um fato que não
tem a natureza familiar teria essa natureza e atribuíram a esses
“trisais” efeitos, ou seja, pretenderam empregar natureza
constitutiva nessas escrituras.
Escrituras essas em que não só se
declara que as três pessoas vivem juntas, mas que também têm
direitos entre elas e perante terceiros que são próprios do
casamento e da união estável monogâmica, na conformidade da
Constituição Federal (art. 226, § 3º), e da Legislação
Infraconstitucional (Código Civil, art. 1.723, caput e
seguintes).
A ilegalidade dessas escrituras
decorre da natureza constitutiva que esses Cartórios Notariais
pretenderam dar a esse tipo de relação, o que está em julgamento no
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em razão do pedido de
providências da ADFAS – Associação de Direito de Família e das
Sucessões.
E o que é pior, os filhos que uma das
mulheres envolvidas vier a ter, se esse tipo de relação for
considerado união estável, serão filhos do “trisal”, ou de todas as
pessoas que figuram nas escrituras.
Tudo isso sem contar que as mulheres
brasileiras lutaram e lutam pela igualdade de direitos há muitos
anos, até que conseguiram a equiparação constitucional, sendo
marido e mulher iguais no casamento segundo a lei. Sempre que há
duas ou mais mulheres numa relação poligâmica, a desigualdade tende
a instalar-se. Note-se que numa dessas escrituras de trisais o
homem é o único chefe da relação. Vamos retroceder na luta das
mulheres por igualdade?
Isto será assunto de um próximo
artigo, em razão da atualidade do tema, afinal o bem e fundamentado
voto do Ministro João Otávio Noronha já proferido e de procedência
do pedido de providências das ADFAS, para que seja vedada a
lavratura de escrituras desse tipo, foi impugnado pelo Conselheiro
Luciano Frota, que já declarou sua divergência, e, assim, o
julgamento do pedido foi adiado para uma próxima sessão do CNJ.
*Presidente da Associação de
Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela
USP e advogada