SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) -
Pesquisadores de dois grupos acadêmicos que estudam o mercado de
planos de saúde defendem que o Brasil regulamente uma fila única de
leitos de internação e de UTI para atendimento de casos graves de
coronavírus, independentemente de os pacientes serem usuários da
rede pública ou privada.
A proposta é de criação de um Sistema Nacional de Vagas para
Casos Graves de Coronavírus, que poderia funcionar nos moldes do
Sistema Nacional de Transplantes.
Caberia ao Ministério da Saúde a normatização e regulamentação
da fila única, mediante articulação com órgãos estaduais,
municipais e prestadores de serviços, cabendo às secretarias
estaduais de saúde a organização das centrais únicas de vagas.
A proposta foi elaborada pelo Grupo de Estudos Sobre Planos de
Saúde, ligado à USP, do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre
Empresariamento na Saúde, da UFRJ.
Ao menos dois países já adotaram medida semelhante, de
subordinação do setor privado da saúde às políticas públicas,
enquanto durar a pandemia do coronavírus.
O governo espanhol, por exemplo, estatizou provisória e
excepcionalmente todos os hospitais privados, enquanto na Irlanda
hospitais particulares foram abertos para atender o público em
geral.
Em coletiva de imprensa para anunciar a medida, o ministro da
Saúde irlandês, Simon Harris, disse que "na resposta à crise do
Covid-19 não pode haver espaço para público versus privado."
"O que se propõe é que o poder público possa contar com mais
leitos disponíveis, sejam eles privados ou públicos, otimizando
assim sua utilização por todos os pacientes que deles necessitem",
afirmam na nota os pesquisadores coordenadores dos grupos, Mario
Scheffer (USP) e Ligia Bahia (UFRJ).
Segundo eles, a legalidade da fila única excepcional e
provisória, enquanto perdura a pandemia, está prevista na
Constituição mas também nos decretos de calamidade, inclusive de
estados e municípios.
A possibilidade de gestão pública dos leitos privados,
independentemente da sua contratação prévia, está assegurada pelo
artigo 5º da Constituição: "no caso de iminente perigo público, a
autoridade competente poderá usar de propriedade particular,
assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver
dano".
A Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), por sua vez, regula
a aplicação desse instituto à área da saúde em seu artigo 15,
inciso XIII: "para atendimento de necessidades coletivas, urgentes
e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de
calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade
competente da esfera administrativa correspondente poderá
requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de
jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização".
Em ambos os dispositivos, há menção expressa a situações de
"iminente perigo público". Para Scheffer e Bahia, trata-se,
justamente, do caso da atual pandemia.
"A preservação da vida de todos é atribuição pública. Por isso,
a fila única pública deveria ser priorizada frente omissões e
demandas oportunistas, desarticuladas e discriminatórias da rede
privada."
Segundo os pesquisadores, as medidas que acompanharam o estado
de calamidade pública decretado pelo governo federal em 20 de março
não reconheceram ou subestimaram a insuficiência, a desigualdade e
a fragmentação da oferta e uso de recursos assistenciais no sistema
de saúde no Brasil, situação que dificulta respostas à altura da
crise sanitária instalada.
Em fevereiro de 2020, o Brasil tinha 2,01 leitos por 1.000
habitantes, taxa menor do que a registrada em países como Itália
(3,18), Espanha (2,97) e Inglaterra (2,81). Essa taxa varia muito
entre regiões e unidades da federação (1,6 no Amapá a 2,6 no Rio
Grande do Sul).
Apenas parte da capacidade instalada hospitalar está disponível
para o atendimento universal, já que 31% dos leitos são destinados
ao atendimento de clientes de planos de saúde e particulares.
"A segmentação da oferta de leitos é peculiar porque, na rede
SUS, 21,5% dos leitos são de natureza privada e 64% são
filantrópicos. Ou seja, um mesmo hospital pode, no Brasil,
vincular-se simultaneamente ao SUS e aos planos privados", dizem
eles.
De acordo com os pesquisadores, a
clivagem da oferta de leitos de acordo com oportunidades de
captação de recursos, públicos ou privados, é responsável por
disparidades regionais e concentração de recursos assistenciais no
setor privado da saúde: em 2018 foram realizadas 171,6 internações
para cada 1.000 clientes de planos de saúde e 73 para cada 1.000
pacientes assistidos pelo SUS.