Documentos sigilosos produzidos pela
Coordenação de Segurança Institucional da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) apontam que pacientes foram
transformados em cobaias
humanas após receberem implantes de materiais clandestinos
por médicos envolvidos com a Máfia das Próteses. A organização
criminosa age em várias regiões do país, inclusive no Distrito
Federal.
Destinado ao promotor José Cláudio
Tadeu Baglio, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime
Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado São Paulo
(MPSP), o relatório ao qual
o Metrópoles teve acesso relata, além
das irregularidades, o caso de nove vítimas monitoradas pela
Anvisa.
No entanto, o número pode ser muito
maior, uma vez que não se sabe o paradeiro de outros 191 produtos
irregulares fabricados pelos investigados. As duas centenas de
próteses de face e crânio, segundo a Anvisa, eram confeccionadas
sem registro ou autorização da agência reguladora, em uma
linha de produção clandestina no Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai) de Joinville (SC). O local foi
interditado em julho do ano passado, após operação do órgão no
local, por não ter condições sanitárias para fabricação
de artigos médicos.
No documento, a Anvisa acusa, além do Senai, pelo menos cinco
empresas de terem algum tipo de participação no suposto esquema.
São elas: URI – Comércio, Importação Exportação de Produtos
Médicos; Bioconect – Indústria e Comércio de Produtos Médicos
e Odontológicos; 3D Sint – Comércio de Produtos Médicos; WMA
Micro Usinagem Médica Odontológica; e Critéria – Indústria e
Comércio de Produtos Medicinais e Odontológicos. Todas constam no
Dossiê de Investigação Sanitária n° 25351.103713/2016-17.
Um dos casos mais graves relatados nos documentos envolve um homem
de 34 anos morador de Macapá (AP). Em fevereiro do ano passado, o
paciente passou por uma cirurgia para implantação de próteses
craniana e mandibular. No entanto, os fiscais da Anvisa
identificaram que o material usado na operação tratava-se, na
verdade, de um molde, daqueles que servem apenas para simular
futuras cirurgias e decorar mesas de especialistas.
Além de colocar em risco a vida do
paciente, o esquema faturou R$ 206 mil pagos pelo plano de saúde,
que não desconfiou se tratar de moldes em vez de próteses
implantáveis.
Vítimas do
esquema
Três vítimas do esquema de implantes
clandestinos em cobaias humanas foram procuradas pela reportagem.
Em um dos casos, o paciente recorreu ao plano de saúde após reagir
a um assalto, há dois anos. O tiro do criminoso perfurou, de ponta
a ponta, a mandíbula da vítima. Durante 12 meses, o paciente lutou
para conseguir autorização da operadora do plano para a
cirurgia, fato incentivado por orientação médica. Há um ano, o
macapaense conseguiu a vida normal de volta.
Sem saber do implante ilegal feito no
marido, a mulher do vendedor autônomo relatou
ao Metrópoles que o procedimento
melhorou a vida do casal. “O médico foi um agente enviado por Deus.
Sem ele, não sei o que seria da nossa família. Meu marido é muito
trabalhador e conseguiu viver novamente depois daquele dia tão
difícil. Se não fossem as dores de cabeça, ele nem lembraria que
fez o implante, nem mesmo cicatriz ele tem. Isso é uma bênção”,
acredita a dona de casa. A identidade do casal será mantida em
sigilo.
Após o assalto à mão armada, quando um
tiro deformou parte do seu rosto, o pequeno empresário teve de
aguardar pelo menos 10 meses desde o incidente até conseguir chegar
a uma mesa de cirurgia. Sem saber sobre a origem duvidosa do
produto implantado no maxilar, o rapaz hoje comemora vitória em um
caso no qual muitas vidas se perdem. O custo total do procedimento
chegou a R$ 493 mil, pagos depois de muito custo pela
operadora.
O plano de
saúde não queria custear e me oferecia alternativas, como próteses
provisórias, com duração de cinco anos. Meu médico me orientou pela
definitiva, que tem material da Ucrânia e é fabricada nos Estados
Unidos
"
Relato do paciente que teve molde
implantado
Segundo o autônomo, um médico foi a
Macapá (AP) especialmente para acompanhar a cirurgia ao lado do,
segundo ele, engenheiro da prótese. “O material chegou no Brasil e
só foi desembalado na sala da operação. Guardo todos os documentos
sobre o caso, que foi um dos mais difíceis da minha vida. Hoje
ninguém diz que tenho uma prótese”, continuou.
O paciente lembra que o médico disse à
época que poucas empresas do Brasil tinham a tecnologia para
customizar a peça. Após conseguir na Justiça que o plano arcasse
com os custos, o empreendedor afirmou que pelo menos três empresas
disputaram o pedido da operadora. “Hoje, um ano após a cirurgia,
tenho acompanhamento com meu médico. Além dele, não houve procura
de ninguém da empresa e nem mesmo da Anvisa. Percebi que tinha dado
certo”, acredita.
Exames
radiográficos
O esquema ilegal de produção e venda de
próteses clandestinas começou, segundo o levantamento da agência,
por meio do cirurgião bucomaxilo Paulo Henderson de Moraes, que era
sócio de uma empresa distribuidora de próteses.
Paulo foi o
responsável pela ideia de utilizar exames radiográficos para a
confecção de peças sob medida feitas por impressora 3D. Ele ficou
sabendo que o Senai havia desenvolvido um projeto com essa
tecnologia, então procurou o diretor de Inovação em Laser da
entidade, Edson Costa Santos
"
Trecho de relatório da Anvisa
Segundo a denúncia da Anvisa, Paulo e
Edson associaram-se e começaram a fabricar implantes, emitindo
notas fiscais até com nomes de pacientes no campo de observações.
As peças que deveriam ser produzidas dentro do projeto de inovação
do Senai passaram a ser comercializadas criminosamente. “Nenhum
teste era realizado, e os pacientes foram transformados em cobaias
humanas”, destaca o relatório.
A reportagem apurou que, após a
operação da Anvisa nas dependências do Senai, Edson foi demitido.
Fontes ligadas ao mercado de próteses informaram que o homem
teria se mudado para a Alemanha, enquanto Paulo de Moraes mora,
atualmente, em Portugal. Os dois não foram localizados para
comentar a denúncia.
Mercado negro
A
operação na unidade do Senai de Joinville foi deflagrada em 4 de
julho de 2017, após a Anvisa receber denúncias anônimas de que as
próteses impressas com tecnologia 3D do Senai abasteciam o mercado
negro.
Os produtos eram repassados para
empresas do ramo e, posteriormente, usados em pacientes com
registros adulterados, com o objetivo de despistar a fiscalização.
Com isso, as companhias ofereciam o material a
médicos.
Os profissionais, por sua vez, solicitavam às vítimas – os
pacientes – que ingressassem na Justiça com o objetivo de obrigar
planos de saúde a custearem as operações, consideradas
emergenciais. Por conta das decisões judiciais, as operadoras eram
forçadas a adquirir os produtos, mas acabavam comprando os
clandestinos pelo preço dos legalizados no mercado formal.
Em outro detalhe das investigações,
descobriu-se que a fabricação de próteses destinadas à cirurgia de
reconstrução crânio-bucomaxilofacial era desenvolvida no mesmo
local onde são feitos itens industriais e mecânicos, como
peças de caminhões, o que acrescenta ainda um potencial risco
de contaminação aos supostos materiais de saúde.
Fac-símile ao qual
o Metrópoles teve acesso, referente a
documento sigiloso da Anvisa
Multa de R$ 1,5
milhão
Segundo a agência informou à época, após o
devido processo legal, as empresas envolvidas nas fraudes poderiam
pagar multas administrativas de até R$ 1,5 milhão. Outras sanções
sanitárias possíveis são notificações, interdições e até mesmo o
cancelamento dos alvarás de funcionamento. O órgão estima que, em
média, cerca de 30% de implantes realizados por ano no Brasil sejam
feitos com produtos ilegais.
Após a interdição do laboratório, o Senai explicou que tem
“linhas de pesquisa para tecnologias inovadoras, voltadas a
materiais e processos de fabricação para diversos setores, entre os
quais aeronáutica, automotivo, agronegócio, saúde, petróleo e gás,
em diversos locais do país. Isso inclui o desenvolvimento de peças
de titânio por deposição a laser, atendendo especificações técnicas
de empresas clientes de seu Instituto de Inovação em Joinville,
cabendo a essas empresas buscar as autorizações necessárias para o
uso desses materiais”.
O Metrópoles procurou a Anvisa para
questionar o relatório e saber a razão pela qual os
pacientes apontados como cobaias não foram informados
que carregam no corpo produtos potencialmente
danosos à saúde. No entanto, a agência não havia se manifestado até
a última atualização deste texto.
A reportagem entrou em contato
também com o Ministério Público do Estado de São Paulo, que recebeu
o documento com as denúncias feitas pela agência reguladora há seis
meses. Por nota, o órgão disse que “o Núcleo do Gaeco/Campinas
[responsável pelo caso] não comenta investigações em andamento e
que tramitam em sigilo”.
Além dos órgãos oficiais,
o Metrópoles tentou, sem sucesso,
contato com os representantes das empresas citadas no relatório
produzido pela Anvisa, mas não havia conseguido êxito até a
última atualização deste texto.