Seguro morreu de velho
Se a regra de aumento de planos de
saúde for aprovada, a partir de certa idade cada aniversário será
ameaça e não celebração
Ligia Bahia, O
Globo
A prioridade para idosos em filas,
viagens em transportes públicos, vagas em estacionamentos não é
extensiva à saúde.
No SUS, frequentemente, faltam acesso
e dignidade no atendimento para crianças ou adultos, e os planos
privados se tornam gradativamente mais caros para os longevos.
Velhos encontram algumas facilidades
para enfrentar a vida cotidiana nas cidades, mas nenhuma
tranquilidade sobre futuros ou atuais atendimentos a problemas de
saúde.
Os direitos para idosos tenderam a
ficar represados em áreas nas quais as escolhas sobre benefícios e
custos não são tão cruciais.
Os cuidados à saúde e as tecnologias
contribuem para o aumento da expectativa e qualidade da vida, mas
pressionam orçamentos públicos e privados.
Minimizar direitos ou o impacto de
gastos crescentes com saúde é antidemocrático e inspira concepções
sombrias ou irrealistas.
A proposta de empresas de planos e
alguns parlamentares de alteração da lei de planos de saúde é
obscura.
A sugestão que tramita no Congresso
Nacional estabelece aumentos sobrepostos das mensalidades para
idosos.
Além dos reajustes anuais, sempre
acima da inflação, querem impor taxas quinquenais de
envelhecimento.
Em um primeiro momento, para os
clientes, pode até parecer uma boa ideia, pois o impacto financeiro
devido à entrada nesta última faixa etária seria “aliviado”.
Mas a longo prazo, considerando que,
em geral, a expectativa de vida tem aumentado, será muito mais
interessante para as empresas.
Não é impróprio supor que a
perspectiva de manutenção de idosos mais “jovens”, com menos
riscos, está baseada no seguinte cálculo: ficar com os
recém-chegados à velhice e impedir a permanência dos demais.
Se a regra for aprovada, a partir de
certa idade cada aniversário será uma ameaça, e não celebração.
O envelhecimento da população é um
indicador de desenvolvimento. Não foi por acaso que Serra Leoa,
cujos habitantes tinham uma expectativa de vida de 50,8 em 2015, se
tornou o epicentro da epidemia de ebola.
No Brasil, a média era 75,5, e 79,1
anos para mulheres. Para as brasileiras com 65 anos, a chance de
viver mais atingiu 18,4 anos.
Ou seja, quase 20 anos para arcar com
o acúmulo de aumentos aritméticos sobre os quais incidirão três ou
quatro fatores multiplicadores (64, 69 e assim em diante).
Negar ou cercear acesso à assistência
de rotina e medicamentos para pressão alta, diabetes, hepatite e
cânceres aumenta a probabilidade de morrer mais cedo. Restrições
dos gastos públicos e liberação da comercialização de planos que
afastam quem mais precisa de cuidados afetam objetivamente a
longevidade.
Quando interesses empresariais e
eleitorais imediatistas vicejam, as possibilidades de reafirmar
alternativas mais abrangentes de pertencimento comum e proveito
coletivo são indevidamente caracterizadas como inviáveis. A recusa
ao debate impede que as questões realmente críticas sejam
examinadas.
A escala e qualidade dos direitos à
saúde e o modo como devemos financiá-los não podem ser dissociados
da definição de um padrão de inovação e uso de ações de saúde
adequados para o país.
Ao invés da exposição clara de
divergências e argumentos opostos, a determinação de um grupo de
empresários é de que o país desista de buscar a conciliação de
compromissos e soluções incrementais e compartilhadas para a
saúde.
Curiosamente, os defensores da
cobrança turbinada para idosos são velhos, ou pré-velhos, que não
se reconhecem sequer nas estatísticas. São estranhos na sua própria
terra e na humanidade.
Atualmente, a proporção de pessoas
acima de 60 anos na população é de 12,5%, e de vinculados a planos,
13,2%.
A “carga não é pesada” — como os
regimes de pré-pagamento pressupõem a conformação de fundos para
diluição dos riscos, pagam os jovens pelos velhos, e os sadios
pelos doentes, a conta fecha —, desde que não se pretenda extrair
lucros rápidos e exorbitantes em uma área tão sensível.
Mesmo um super bem-sucedido indivíduo
imerso em hipermercado livre necessitará cuidados de outros quando
ficar doente. A adesão quase totêmica aos valores do tipo “eu
resolvo e fiz por merecer” não tem sentido na saúde.
Decisões relevantes sobre a vida e
longevidade não deveriam ser deixadas ao sabor das propositais
ajeitadas, via governo, do mercado.
O projeto de lei prevê a expulsão de
velhos e transforma o SUS em prestador de serviços para os planos.
Os fundamentos de qualquer sistema de saúde incluem o incremento da
prevenção, esforços para realizar diagnósticos e tratamentos
precoces e evitar tratamentos ineficazes.
Uma lei que, no primeiro artigo, prevê
a restrição de coberturas mediante segmentação, desiste de buscar
possibilidades mais abrangentes de pertencimento comum e proveito
coletivo e reafirma regras de uma estratificação social injusta: em
primeiro lugar, ricos e saudáveis, em último, as pessoas cujos
antepassados foram escravizados.