*Reportagem publicada na edição
2018 do Anuário da Justiça São Paulo, que
será lançado nesta quarta-feira (15/8), na sede
do Tribunal de Justiça de SP.
O Tribunal de Justiça de São Paulo
julgou, em um ano, mais de 40 mil casos tendo como objeto a saúde.
Da falta de um remédio simples em um posto de saúde público à
autorização para uma complexa cirurgia fora do país, juízes e
desembargadores lidam diariamente com enorme variedade de pedidos.
Estão permanentemente no fio da navalha ao terem de decidir entre o
direito fundamental à vida e os custos que esse direito impõe ao
Estado e à sociedade.
Na Seção de Direito Público, foram
julgados 14 mil recursos. Quase 10 mil deles se referiam a pedidos
de medicamento, tema que em 2017 ocupou o quinto lugar entre as
maiores demandas da seção. Em 2016, esses pedidos ocuparam o
terceiro lugar no ranking de temas mais discutidos.
A Seção de Direito Privado fechou 2017
com mais de 25 mil julgamentos referentes a planos de saúde, que
alcançaram o primeiro lugar entre os assuntos mais julgados, à
frente de processos sobre contratos bancários e promessas de compra
e venda de imóveis. Na maioria dos processos os usuários dos planos
de saúde reclamam da recusa de pagamento de próteses, cirurgias e
altos custos para internação de emergência; dos índices de reajuste
das mensalidades; de reajustes por faixa etária, principalmente aos
59 e 60 anos. Outro problema comum é o encarecimento do plano de
saúde por sinistralidade. Na prática, quanto mais a pessoa usa os
serviços a que tem direito, mais prejudicada ela é.
Fonte: Secretaria Judiciária do
TJ-SP
Fonte: Secretaria Judiciária do
TJ-SP
Pesquisa do Observatório da
Judicialização da Saúde Suplementar, do Departamento de Medicina
Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, elencou os principais
motivos das ações contra planos de saúde, em seleção de quatro mil
decisões de 2013 e 2014 de segunda instância do TJ-SP e concluiu
que em 92% dos acórdãos foi dada razão ao usuário, sendo que em 88%
dos casos o pleito foi integralmente acolhido e em outros 4% a
pretensão foi acolhida em parte. Em 8% dos julgados a decisão foi
totalmente desfavorável ao cidadão.
Presidente da Associação Nacional das
Administradoras de Benefícios (Anab), criada em 2010 e que reúne
administradoras de planos coletivos por adesão, o advogado
Alessandro Acayaba de Toledo afirma que há distorções dos dois
lados e que o excesso de regulação do setor gerou um efeito
reverso, avolumando as discussões no Judiciário. Acayaba afirma
também que as condenações judiciais de determinados litigantes são
repassadas a todos os usuários do plano coletivo. “Todas as
despesas do plano, como os sinistros, somados à inflação médica,
são suportadas pelas operadoras de saúde. Toda vez que, por força
judicial, se traz uma despesa imprevisível, isto gera um
desequilíbrio econômico financeiro em todo o contrato, obrigando a
operadora a lançar esta inesperada despesa no cálculo atuarial,
tornando-se um agravante para o reajuste.”
Para o advogado que preside a Anab,
vive-se um paradoxo no país: há excesso de regulamentação,
destinado apenas a alguns setores da cadeia, e sobra reclamação dos
usuários. Outro dado interessante é o atendimento dispensado aos
usuários. “Normalmente, se você sente dor e liga para o plano
pedindo ajuda, o encaminhamento dado é para que você pesquise a
lista de médicos que a operadora disponibiliza ou, no caso de
seguro, que vá em busca do médico da sua escolha. O usuário, em
muitos casos ou na sua grande maioria, nem sempre faz a melhor
escolha ou seleciona o médico mais adequado para avaliar sua
enfermidade. A partir daí o paciente se torna, sem culpa, um
consumidor do plano com um cartão sem limites. Ao final, a conta
volta na forma de reajuste. É preciso que este tipo de atendimento
seja modernizado e o usuário seja acolhido como paciente logo no
primeiro atendimento”, afirma Acayaba.
Acessa SUS
O estado de São Paulo gasta mais de R$ 1 bilhão ao ano por força de
condenações judiciais em matéria de Saúde Pública, de acordo com
dados da Procuradoria-Geral do Estado. União, estados e municípios,
somados, gastam R$ 7 bilhões ao ano para cumprir decisões
judiciais, segundo o Ministério da Saúde.
De acordo com análise do Tribunal de
Contas da União, a judicialização da saúde provoca a realocação
emergencial de recursos, descontinua o tratamento de pacientes
regulares, ameaça os gestores pelo eventual descumprimento das
decisões judiciais e torna possível que os laboratórios aumentem os
preços de medicamentos na hipótese de aquisição emergencial, sem
licitação, para o cumprimento das decisões judiciais.
Em fevereiro de 2017, o estado de São
Paulo criou em esforço conjunto com a Secretaria Estadual da Saúde,
o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública e o Ministério Público
um programa para desjudicializar casos desnecessários. O Acessa SUS
tem o objetivo de garantir, à população, cobertura de medicamentos
e tratamentos antes que os pedidos cheguem à mesa do juiz.
Por meio dele, as pessoas que, diante
da recusa de atendimento em um posto de saúde, procuram a
Defensoria Pública ou o Ministério Público com suas receitas
médicas agora são encaminhadas a uma comissão técnica do governo,
que estuda cada caso e avalia se ele poderá ser atendido. A
comissão, que no momento só funciona na capital e na Grande São
Paulo, tem apresentado resultados positivos. O atendimento é
prestado no Ambulatório Médico de Especialidades Maria Zélia, na
capital.
Fonte: Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo
O defensor público de São Paulo
Alvimar Virgílio de Almeida conta que os acordos firmados em 2017
pelo Acessa SUS diminuíram em 70% as ações que a Defensoria Pública
de São Paulo costumava propor no Judiciário. De fevereiro a junho
de 2017, apenas 17% dos pedidos que chegaram ao órgão foram
judicializados. “Nossa linha condutora é dar respostas a esses
problemas sem necessariamente acionar o Poder Judiciário”, afirma
Almeida.
No caso de medicamentos e insumos não
contemplados pelo SUS, o paciente é orientado a verificar, junto ao
médico, a possibilidade de substituição por outro remédio com
equivalência terapêutica já disponível na rede pública. Se a
substituição não for possível, é formalizada a solicitação
administrativa. Os técnicos da Secretaria de Saúde fazem a
avaliação dos pedidos em até 30 dias; nos casos de urgência
clínica, o prazo é de 72 horas. O programa oferece uma espécie de
consultoria, orientando sobre as possibilidades terapêuticas
disponíveis no SUS e evitando, desta forma, ações e condenações
judiciais.
Segundo a Secretaria Estadual da Saúde
de São Paulo, o número de condenações judiciais sofridas para
entregar medicamentos e insumos a pacientes caiu 16% em 2017, após
a adoção do programa (veja quadro acima). Com a
redução, diz a pasta, os cofres públicos economizaram R$ 206
milhões no período de um ano.
Esses comitês vão elaborar pareceres
para subsidiar o juiz na hora da decisão. O banco de dados nacional
ficará disponível no site do CNJ, com notas técnicas, análises de
evidências científicas e pareceres técnico-científicos consolidados
emitidos pelos NAT-Jus, pelos Núcleos de Avaliação de Tecnologia em
Saúde (NATs) e pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia
no SUS (Conitec), além de informações da biblioteca do Centro
Cochrane do Brasil (instituição sem fins lucrativos) e outras
fontes científicas.
O conselheiro do CNJ Arnaldo
Hossepian, que supervisiona o Comitê Nacional da Saúde, afirma que
os esforços visam a evitar demandas judiciais abusivas, impedindo
que haja uma desestruturação da cadeia. “A ideia é fazer com que a
prestação jurisdicional seja concedida de forma criteriosa. De
forma alguma pode servir de instrumento para a obtenção de ganhos
ilícitos ou de fonte de patrocínio de medicamentos ainda em teste
em outros países. Há que se afastar a utilização predatória do
Poder Judiciário”, explica. “O Judiciário é o desaguadouro daquilo
que o advogado e o profissional de medicina entenderam que era o
caso de se pleitear. Que o Judiciário possa deliberar sabendo se
aquilo de fato é compatível”, complementa.
Desde novembro de 2017, os NATs estão
sendo implantados pelos Tribunais de Justiça. Já existem, ao menos
no papel, em quase todos os 27 estados. Os NATs, com suas equipes
formadas, devem disponibilizar pareceres técnicos isentos e de alta
qualidade, em cerca de 50 temas mais incidentes no Judiciário. O
intuito é que os juízes, antes de decidir, consultem essas
informações, baseadas em medicina de evidência.
Em São Paulo, as capacitações ocorrem
no Centro de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio Libanês. Nos
próximos três anos, esse hospital investirá, por meio do Programa
de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de
Saúde, cerca de R$ 15 milhões na estrutura do banco de dados do
CNJ. O conselho também promoverá curso de capacitação a distância
de magistrados de todo o país, oferecido em plataforma digital.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, o
núcleo técnico em saúde foi criado em 17 de novembro de 2017, pela
Portaria 9.469/2017. Em maio de 2018, todavia, ele ainda estava em
fase de estruturação.
Experiência
exitosa
O juiz João Baptista Galhardo participou do embrião do programa
Acessa SUS. No início de 2009, após ter atuado por 15 anos na 2ª
Vara Criminal de São Carlos, transferiu-se para a Vara da Fazenda
Pública de Araraquara. Encontrou grande número de ações sobre
pedidos de medicamentos, órteses, próteses e procedimentos
cirúrgicos.
Em sua comarca, conta, quase tudo era
negado pelo poder público de forma administrativa – os pedidos dos
pacientes sequer eram respondidos. “Havia consenso na cidade de que
somente com ação judicial é que o sujeito conseguiria obter o que
precisava. Era ação para tudo quanto era coisa, até para aspirina”,
diz Galhardo.
Segundo o juiz, grande maioria dos
processos era deflagrada pela Defensoria Pública, que, por sua vez,
gastava quase toda sua energia para atender esses casos. Havia
muitos pedidos de medicamentos padronizados e inseridos no rol do
SUS, mas o cidadão não conseguia obter o medicamento senão por meio
da ação judicial.
Ele se reuniu com agentes públicos da
área da saúde e da área jurídica, bem como com a Defensoria, para
buscar uma solução. Alguns municípios já contavam com algum tipo de
organização por parte dos agentes públicos, que, antes da liminar,
avaliavam o caso e procuravam dar solução para o problema. Galhardo
usou a ideia, com algumas adaptações, e criou-se em Araraquara a
Comissão de Avaliação de Pedidos de Medicamentos e Procedimentos,
composta de membros das secretarias municipal e estadual de Saúde e
representantes das Procuradorias do estado e do município. Ela
analisa todos os pedidos de cidadãos e busca uma solução entre as
alternativas que o SUS oferece. “Tivemos uma queda significativa do
número de processos. Hoje o que temos são casos que a pessoa não
conseguiu resolver por meio da comissão. Principalmente casos de
oncologia, para os quais o SUS ainda não tem muitas
alternativas.”
Com a criação da comissão, a
quantidade de processos caiu 70% entre 2010 com 2011 e se mantém no
mesmo nível até hoje. Segundo Galhardo, as soluções alternativas
costumam ser aceitas. “A grande maioria dos casos é deflagrada pela
Defensoria Pública. E este órgão, aqui em Araraquara, concorda com
a proposta do SUS 80% das vezes”, diz.
O juiz conta que geralmente há recurso
da parte autora quando esta tem advogado particular. Nestes casos,
há outro fator que pondera: “Quando é advogado particular e é
demonstrado que a parte não se enquadra como hipossuficiente, não
concedo o pedido para que o SUS pague o tratamento.” Em alguns
casos o tribunal mantém sua decisão e, em outros, a modifica,
diz.
Galhardo conclui que o lado positivo
da judicialização é que tira o poder público da inércia. “Os
tratamentos acabam sendo incorporados, como ocorreu com o coquetel
do HIV e o canabidiol. Mas ela não pode virar uma panaceia. Já
foram incorporados até florais. Daqui a pouco vão dizer que macumba
cura dor nas costas e vão querer que o SUS pague o tratamento! É
importante ter cautela.”
A judicialização da saúde pública,
diz, está muito ligada à desorganização do sistema. “O estado e os
municípios não se comunicam adequadamente, há ações em que os dois
acabam entregando o mesmo medicamento.”
Para Galhardo, ainda prevalece entre
seus pares a ideia de que o juiz não tem obrigação de buscar provas
no processo, pois não é parte: “Muitos acham que esses núcleos ou
comissões tendem a ser sempre favoráveis ao poder público e não têm
isenção”, afirma. “Também acham que o juiz não deve consultar
ninguém, sendo exclusiva dele a tarefa de decidir se concede ou não
a liminar, até porque a ação sempre vem acompanhada de uma receita
médica indicando que aquele medicamento é o que deve ser concedido
e que o juiz não pode mudar o pedido do autor”, explica.
Jurisprudência em São
Paulo
A maioria das ações da área de saúde que chega à Seção de Direito
Público, como pedidos de tratamentos, medicamentos e ressarcimento
por procedimentos que não são oferecidos pelo SUS é julgada
favoravelmente ao indivíduo. Sem conhecimento técnico para avaliar
a existência de tratamentos mais baratos ou que estejam na lista do
SUS e tenham o mesmo efeito, na maioria das vezes, os juízes
preferem não contrariar o laudo do médico da parte.
Os desembargadores entendem também
que, como o direito à saúde está previsto nos artigos 196 e 197 da
Constituição Federal, não pode ser negado. O desembargador Ricardo
Dip, ex-presidente da seção, explica que é uma situação delicada
para os juízes, que precisam decidir logo em sede de liminar e sem
contato com o paciente. “Como é que vamos negar isso se as
contestações apresentadas pelas fazendas ainda por cima são
genéricas?”, critica. “É loucura um país colocar nas suas leis o
direito à saúde. O Brasil colocou e como cláusula pétrea! Há uma
avalanche correspondente”, resume.
Assim como seus colegas de seção, Dip
leva em conta o laudo médico anexado ao processo. E costuma citar o
Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução 1.931/2009: “O
médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto,
renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir que quaisquer
restrições ou imposições possam prejudicar a eficiência e a
correção de seu trabalho. As relações do médico com os demais
profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e
independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar
do paciente”.
Normalmente, a defesa do estado
argumenta restrições orçamentárias; conflitos de interesses
individual e coletivo; ofensa à lei de responsabilidade fiscal; não
padronização da medicação no sistema de saúde; e até mesmo
possibilidade de cometerem crime de descaminho.
Fonte: SCODES-Secretaria de
Estado da Saúde de SP. Extraído em 31/12/2014 e 10/5/2018
O ex-procurador-geral do estado de São
Paulo Elival da Silva Ramos reconhece que em ações de pedidos de
medicamentos o Estado sempre é derrotado, até porque, devido à
“urgência” do caso, muitas vezes o mérito não é julgado e os
remédios são concedidos por meio de liminares. Para o procurador,
que se aposentou em março de 2018, ao determinar que o Estado
forneça medicação que não está na lista do SUS, o Judiciário está
guiando a política de saúde pública, o que não lhe cabe.
Elival Ramos tem a cifra atualizada:
São Paulo gasta mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens
judiciais na área de saúde. Analisando onde esse dinheiro foi
investido, afirma, é possível constatar que a judicialização é mais
comum em regiões mais ricas do estado, enquanto nas mais pobres
faltam hospitais e saneamento básico. “Quando o Judiciário manda
fornecer insulina importada significa que, do orçamento da saúde,
uma parte vai ser destinada para isso. No Brasil, não desenvolvemos
a vacina contra a dengue, mas temos fornecimento de medicamentos
altamente sofisticados em juízo, o que é contraditório”,
afirma.
Para ele, o ativismo se dá porque os
juízes só estão lendo a primeira parte do artigo 196 da
Constituição. O artigo inteiro diz que “a saúde é direito de todos
e dever do Estado” e que “esse direito é assegurado mediante
políticas públicas”. Então, reforça, o direito à saúde é
condicionado a uma política pública que o torne concreto, e quem
implementa essa política é o poder público, a administração,
seguindo a legislação. Para o procurador aposentado, o Judiciário é
hoje o controlador das políticas públicas sociais no Brasil. Mas
não deveria ser, pois não é o formulador de projetos e nem foi
eleito para isso.
Fonte: SCODES-Secretaria de Estado
da Saúde de SP. Extraído em 31/12/2014 e 10/5/2018
Fonte: SCODES-Secretaria de Estado
da Saúde de SP. Extraído em 31/12/2014 e 10/5/2018
Soluções
superiores
Estão no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça
casos que prometem dar solução a algumas das controvérsias. No STJ,
a 1ª Seção, em abril de 2018, concluiu o julgamento do REsp
1.657.156, sob o rito dos recursos repetitivos, e estabeleceu
critérios para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de
remédios fora da lista do SUS.
Foi decidido que o Judiciário poderá
determinar ao poder público o fornecimento de medicamentos não
incorporados do SUS desde que presentes, cumulativamente, os
seguintes requisitos: laudo do médico do paciente comprovando que o
medicamento é imprescindível e que os medicamentos fornecidos pelo
SUS são ineficazes para o tratamento pretendido; demonstração da
incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do
medicamento prescrito; e existência de registro do medicamento na
Anvisa.
Além de fixar esses três critérios, a
decisão do STJ determinou que, depois de transitada em julgado a
decisão em cada caso concreto, o Ministério da Saúde e a Comissão
Nacional de Tecnologias do SUS fossem comunicados para estudos
sobre a viabilidade de os medicamentos pleiteados serem
incorporados pelo SUS. Os critérios fixados só serão exigidos nos
processos judiciais distribuídos a partir dessa decisão.
No STF, ainda aguarda decisão o
Recurso Extraordinário 566.471, que discute se o Estado deve
fornecer medicamentos de alto custo que estão fora da lista do SUS
por meio de decisão judicial. Já o RE 657.718 questiona a
distribuição e comercialização de medicamentos sem registro na
Anvisa. O julgamento dos dois recursos, com repercussão geral
reconhecida, foi interrompido, em setembro de 2016, por pedido de
vista do ministro Teori Zavascki, morto em janeiro de 2017 e
sucedido por Alexandre de Moraes, que ainda não preparou o
voto.
A tese apresentada pelo relator,
ministro Marco Aurélio, é no sentido de que o Estado pode ser
obrigado a fornecer remédios de alto custo, desde que comprovadas a
imprescindibilidade do medicamento e a incapacidade financeira do
paciente e de sua família para a aquisição. O ministro também votou
para que medicamentos não registrados no Brasil, mas devidamente
testados e certificados no exterior possam ser fornecidos pelo
poder público.
Votaram até o momento Marco Aurélio,
Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Barroso disse que o tema
certamente é um dos mais complicados em análise no tribunal. No
caso da demanda judicial por medicamento não incorporado pelo SUS,
inclusive quando de alto custo, concluiu que o Estado não pode ser,
como regra geral, obrigado a fornecê-lo.
“Não há sistema de saúde que possa
resistir a um modelo em que todos os remédios, independentemente de
seu custo e impacto financeiros devam ser oferecidos pelo Estado a
todas as pessoas. É preciso, tanto quanto possível, reduzir e
racionalizar a judicialização da saúde, bem como prestigiar as
decisões dos órgãos técnicos, conferindo caráter excepcional à
dispensação de medicamento não incluído na política pública”,
afirmou.
Com relação ao fornecimento de
remédios não registrados pela Anvisa, Barroso registrou que, como
regra geral, o Estado não deve ser compelido ao fornecimento por
decisão judicial, salvo na hipótese de demora irrazoável da Anvisa
em apreciar o pedido — prazo superior a 365 dias.
O ministro Luiz Edson Fachin seguiu a
mesma linha de Barroso e propôs parâmetros que devem balizar os
pedidos de medicamento, sendo dois diferentes da lista de seu
colega. Um deles é a indicação do medicamento no laudo médico por
meio das denominações comuns brasileira (DCB) ou internacional
(DCI). O outro é a justificativa da inadequação ou da inexistência
do remédio ou tratamento na rede pública.
Fachin propôs a tese: “No âmbito da
política de assistência à saúde, é possível ao Estado prever, como
regra geral, a vedação da dispensação do pagamento, do
ressarcimento ou do reembolso de medicamento e produto, nacional ou
importado, sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária
– Anvisa”.
Saúde pública
Reynaldo Mapelli Júnior é promotor de Justiça do Ministério Público
de São Paulo e moveu uma ação civil pública coletiva em que
conseguiu que fumantes com doença pulmonar obstrutiva crônica
(parecida com enfisema pulmonar) passassem a ser tratados de graça.
Na época, o SUS excluía fumantes do atendimento. O protocolo
clínico foi homologado em São Paulo. Depois foi incorporado ao SUS
em todo o país, sem necessidade de novas ações judiciais
individuais.
Entre as funções do MP está a
fiscalização do sistema de saúde pública. O órgão pode dar uma
recomendação para que o gestor resolva o problema, propor um Termo
de Ajustamento de Conduta e, em casos mais graves, ajuizar uma ação
civil pública. O MP tem legitimidade para ações individuais também.
Conforme Mapelli, entre as demandas individuais estão pedidos de
medicamentos, tratamento para a saúde mental, para vício em drogas
e cirurgias de emergência.
Na visão de Reynaldo Mapelli, os
juízes devem ter mais cuidado na apreciação dos pedidos. Ele sugere
que, durante a instrução, ouçam testemunhas e busquem informações
de órgãos oficiais, como a Conitec. Criada pela Lei 12.401/2011, a
Conitec é um órgão colegiado do Ministério da Saúde que fornece
informações sobre a incorporação, a exclusão e a alteração pelo SUS
de tecnologias em saúde, bem como na constituição e alteração de
protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
Para o promotor, os juízes costumam
seguir uma única prescrição médica, o que acontece na maioria das
vezes. “Há muitas liminares em que a urgência simplesmente não
existe. É importante verificar se realmente há risco de morte e se
não há possibilidade de pedir mais informações a respeito daquela
receita.”
Fonte: SCODES-Secretaria de Estado
da Saúde de SP. 1 Para calculá-lo, a Secretaria de Saúde divide
o número de ações cadastradas pela população local vezes
10.000. 2 População estimada IBGE 2017
Em 2013, Mapelli se licenciou do MP-SP
e atuou no Poder Executivo como coordenador do Núcleo de Assuntos
Jurídicos do gabinete do então secretário estadual da Saúde de São
Paulo, Giovanni Cerri. Foi quando escreveu sua tese de doutorado,
“Judicialização da saúde e políticas públicas”, que defendeu dois
anos depois na Faculdade de Medicina da USP.
O trabalho apresenta um retrato das
distorções provocadas pelas ações judiciais para fornecimento de
medicamentos no estado de São Paulo entre 2010 e 2014. A tese
mostra que 60% dos pacientes que acessam o Judiciário para pedir
medicamentos são clientes de hospitais e clínicas privadas.
“Normalmente são tratamentos de alto custo e os processos são
ajuizados por advogados que cobram caro.”
A opinião dele vai ao encontro do que
diz o ex-procurador-geral Elival da Silva Ramos. “A população mais
humilde nem acesso ao Judiciário tem. Desviam-se recursos por meio
dessas ações judiciais. Você tira dinheiro público para dar para
uma pessoa que já tem recursos”, diz Mapelli. No entanto, o
promotor ressalva que a Constituição não faz distinção de ricos e
pobres, garantindo a todos o acesso à saúde pública. “Toda
população perde saúde quando o interesse individual é colocado
acima do coletivo”, resume.