Alfredo Gil (*)
Em 1995, fiz parte de uma equipe de
acompanhantes terapêuticos do setor norte de Londres no bairro de
Camden Town. Nossa função era a de ajudar os pacientes no período
delicado que sucede a internação psiquiátrica. O acompanhamento
vinha garantir uma certa continuidade no tratamento recebido
durante a internação e um retorno ao domicílio que não fosse vivido
pelo paciente como um momento de solidão, desamparo e angústia que
o levasse a recrudescência dos sintomas. Conhecia muito bem esta
prática desde o final dos anos 80, pois antes, em uma clínica de
Porto Alegre, eu era regularmente solicitado, para este mesmo fim,
por psiquiatras e mesmo por terapeutas ocupacionais. Mas a
particularidade do serviço londrino em questão era seu ecletismo. O
responsável tinha formação em literatura inglesa e a grande maioria
dos acompanhantes não vinha do campo da saúde mental. Lembro, por
exemplo, de uma jovem formada em jornalismo. Entretanto, apesar do
espírito humanista que estava presente, predominava um certo
pragmatismo anglo-saxão que garantia a formação dos acompanhantes
através de workshops, ou seja, encenávamos situações com as quais
poderíamos nos confrontar na prática. Exemplo: o acompanhante está
em visita no apartamento do paciente. Um amigo deste bate na porta
lhe propondo fumar um baseado. O que fazer? Como intervir? Que
atitude assumir?
Certamente havia uma utilidade na
teatralização de tais situações para os colegas menos
experimentados. De minha parte, calcado na minha experiência, sabia
que o aprendizado da função e da atitude terapêutica junto a um
paciente não se daria pela “simulação”, pela simples transmissão de
um procedimento, como ensinam os bombeiros nas escolas em caso de
incêndio.
O retorno de tais lembranças se deu em
função de uma parte da orientação que encontrei no último plano de
saúde mental e de psiquiatria anunciado no dia 28 de junho, pela
ministra da Saúde francesa, Agnès Buzyn. As fotos da capa deste
documento lembram mais um prospecto de férias do que um plano de
saúde para pessoas que padecem de sofrimento psíquico. Vê-se: uma
baía com veleiros junto a uma colina rica em vegetações e
coqueiros, um grupo de esportistas correndo com óculos de sol, o
adolescente com seu telefone celular, etc. Este tipo de
representação cola com um dos objetivos propostos no primeiro dos
três eixos principais do dito plano de saúde, qual seja, a
desestigmatização do sofrimento psíquico em geral, e da doença
mental em particular, pela via da educação e da informação do
grande público, graças à internet e guias de instrução endereçados
a estudantes.
Não podemos negar que os diferentes
meios de comunicação ajudam as pessoas a melhor compreender tal ou
tal doença, tanto para aquele que dela padece como para os seus
familiares. É o fundamento do que se tem chamado “educação
terapêutica”, desenvolvida, por exemplo, para pacientes diabéticos.
Mas, tratando-se de sofrimento psíquico, a experiência mostra que
tamanhas informações alteram o tratamento subjetivo da angústia,
não necessariamente aplacando-a mas por vezes aumentando-a. Faço
meu o adágio lembrado aqui, em junho, por Robson Pereira, que diz
que, nos dias de hoje “quem não está confuso é porque está mal
informado”. Mal ou bem informado o que se percebe é que nunca
estivemos tão informados e que este excesso não tem diminuído a
desorientação dos interessados, talvez mesmo, como já disse, a
tenha agravado.
O sentimento que se tem na leitura
deste documento é de que se trata mais de um planejamento de gestão
empresarial, com seus devidos procedimentos, de que um programa de
cuidados humanos: “gestão de conflitos, regulação das emoções e do
estresse” são o vocabulário gestionário que encontramos implicando
uma virada substancial na concepção do tratamento. Os elementos
envolvidos no sofrimento – conflito, emoções e estresse –
transformam-se, neste plano de saúde mental, em “competências
psicossociais” justificando a lógica gestionária. O cúmulo, mas que
se enquadra no conjunto proposto, é a importância que se atribui ao
“sentimento de bem-estar que terá (com as novas medidas) um impacto
positivo sobre os comportamentos pro-sociais e os comportamentos
benéficos para a saúde (resposta à depressão, ao estresse, às
condutas aditivas, à saúde sexual, etc) ”. Desta última, a “saúde
sexual”, não achei definição.
Notem que o sentimento de bem-estar é
promovido pela orientação política atual como remédio a quadros
clínicos que podem ser graves, como depressão e condutas aditivas.
Esta pirueta absurda, que transforma o mal em bem, dores em
competências, seria obtida graças aos profissionais que serão,
desde então, formados segundo o método da “meditação de plena
consciência”. Seu melhor representante na França se chama
Christophe André, psiquiatra que trabalha no Hospital Sainte-Anne.
Os títulos de seus livros são eloqüentes na transformação do mal em
bem: “Rir e Curar”, “Não esqueça de ser feliz: abecedário de uma
psicologia positiva”, “Imperfeitos, livres e felizes”, e por aí
vai.
Por fim, seguindo a aplicação deste
plano de saúde, deveremos também “reforçar as competências”,
“desenvolver ações”, e “elaborar estratégias”, “ter uma visão
positiva da saúde mental e promover seu bem-estar”.
Para atingir tais objetivos, a
aplicação deste programa se apoiará ainda no modelo “Mental
health first aid” autraliano. Criado em 2000, alguns o
apresentam como a receita mais eficaz do momento. Utilizados nos
países anglo-saxões ele será lançado na Alemanha e na Suíça. O
leitor pode ter uma amostra no link https://www.youtube.com/watch?v=wSAq7RwuhGs.
Assistimos aí a uma representação (que me lembrou aquelas de
Londres) na qual uma pessoa se faz passar por um vizinho que tenta
ajudar e acalmar sua vizinha, bastante agitada e ansiosa, se
queixando de que seus pensamentos são ouvidos pelo governo. Mais
uma vez, a ideia é de informar e “formar” o grande púbico,
estudantes e jovens em sua ação se confrontados com uma pessoa que,
devo dizer, esteja com sua saúde mental enfraquecida ou perturbada.
Caso contrário, se o designarmos “doente mental” reintroduziremos o
estigma que se deve evitar.
Entre o ecletismo londrino, mas que
preservava uma postura humanista, e as estratégias do novo plano de
saúde mental de psiquiatria a diferença é imensa. A política atual
trata da condição humana como um aparelho gestionário pretendendo
formar fulano ou sicrano para os primeiros socorros (first
aid), como se tais medidas apaziguassem alguém que padece da
convicção patológica de ser transparente e de ter seus pensamentos
lidos. O esforço em banalizar o que é grave – repleto de
pensamentos positivos e de bons sentimentos que fazem o dito
bem-estar – busca antes de tudo reduzir os custos financeiros que
uma atitude séria e profissional exige para cuidar daqueles que
sofrem cotidianamente. Mais grave ainda: lembremos que tais
procedimentos, que se pretendem profiláticos, serão aplicados
também para a prevenção do suicídio.