O Ministério Público Federal pediu à Justiça o bloqueio de R$ 4,4 bilhões da Seguradora Líder, responsável por gerir o seguro DPVAT, obrigatório para indenizar vítimas de acidentes de trânsito que o governo Jair Bolsonaro tentou extinguir em 2019.
A Procuradoria acusa a empresa de leniência com fraudes na obtenção de seguros e maquiagem nas projeções de sinistros. Diz que a Líder "tem gerido esses recursos públicos federais de forma temerária, danosa e em vilipêndio aos princípios constitucionais de economicidade, transparência e legalidade".
Em primeira decisão sobre o caso, o juiz Mauro Luiz Rocha Lopes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, negou o pedido, sob o argumento de que o processo ainda está em fase inicial e que o bloqueio poderia colocar em risco o cumprimento das obrigações da empresa.
O DPVAT foi tema de série de reportagens da Folha de S.Paulo em 2020, que mostraram denúncias de mau uso do dinheiro arrecadado -com a compra, por exemplo, de veículos e garrafas de vinho- e de conflitos de interesse e favorecimento de sindicatos de corretores.
O consórcio foi formado em 2006, com a função de administrar o seguro que é cobrado de todos os proprietários de veículos. É formado por 55 corretoras, entre elas subsidiárias de gigantes do mercado financeiro como Bradesco Auto/Re Corretora de Seguros, Itaú Seguros de Auto e Residência e Caixa Seguradora.
Para o Ministério Público, o monopólio na gestão do DPVAT trouxe prejuízo ao contribuinte, já que as regras de remuneração do consórcio incentivaram o aumento indiscriminado de custos e a leniência com as fraudes que os gestores deveriam combater.
Como recebe 2% do total arrecadado pelo seguro, dizem os procuradores, o lucro de seus associados é proporcional ao valor do prêmio pago pelos segurados. Assim, diz a Procuradoria, não havia incentivos para combater fraudes nem cortar despesas.
A ação civil pública que pede o bloqueio dos recursos é baseada em descobertas da Operação Tempo de Despertar, que investigou um "gigantesco esquema de fraudes" na concessão de indenizações -que incluía a compra de boletins de ocorrência e laudos médicos fraudados- e em relatórios do TCU (Tribunal de Contas da União).
O Ministério Público Federal aponta que o valor das indenizações pagas pelo seguro DPVAT passou da casa dos 300 milhões no início dos anos 2000 para mais de R$ 700 milhões em 2005. Continuou subindo até passar a marca de R$ 1 bilhão em 2006 e superou os R$ 2 bilhões em 2010.
Os gastos com escritórios de advocacia também subiam, como já havia mostrado a Folha, mas sem cláusulas de desempenho no questionamento das fraudes.
"O incremento das despesas do Consórcio de Seguradoras, em vez de refletir de forma negativa na margem de lucros das seguradoras Consorciadas, provoca um aumento dessa margem de lucros", explicam os procuradores.
O valor do bloqueio equivale, segundo a ação, ao excedente acumulado pela seguradora "a partir de práticas irregulares e perniciosas". A empresa tem R$ 8,9 bilhões em seu caixa, mas precisa de apenas R$ 4,5 bilhões para fazer frente a suas despesas e compromissos com o pagamento de indenizações.
Bolsonaro tentou extinguir o seguro em 2019 e já falou em reaver essa quantia, mas a empresa diz entender que os recursos são privados -avaliação questionada pelos órgãos de controle, como o MPF e a Susep (Superintendência de Seguros Privados).
"Essa elevada soma, não obstante sua inquestionável natureza pública, permanece sob a gestão da mesma empresa privada que durante anos agiu em total descompasso com a relevante função que lhe foi delegada", escreveu a Procuradoria, que acusa também a Susep de ter "olhos complacentes" para as irregularidades.
Durante anos, o órgão regulador foi capturado por seguradoras e corretores de seguros, que mantiveram representantes na diretoria da autarquia que fiscaliza o setor, o que levou os servidores da Susep a preparar uma denúncia de conflito de interesses e favorecimento à Polícia Federal.
Uma das críticas do Sindsusep são repasses, durante 20 anos, de taxa de corretagem a sindicatos de corretores de seguros. O valor total do repasse soma R$ 266 milhões. Para os servidores, é irregular porque o seguro é obrigatório e, por isso, não envolve corretores.
A presidente da Susep, Solange Vieira, já havia admitido em entrevista à reportagem dificuldades de fiscalização do DPVAT. Essa é, na visão do governo, uma das razões para a proposta de extinção do seguro obrigatório, que foi barrada pelo Supremo.
A entidade voltou a ser cobiçada por lideranças sindicais ligadas aos corretores após a aproximação de Bolsonaro com o centrão, como o presidente do Solidariedade de Goiás, Armando Vergílio, um dos alvos da denúncia do SindSusep no período em que presidiu a autarquia.
Em nota, a Líder disse que ainda não foi foi notificada formalmente sobre a ação movida pelo Ministério Público Federal e que está comprometida com todos os esclarecimentos que se façam necessários sobre a gestão dos recursos do Seguro DPVAT.
"A Líder ressalta que, nos últimos anos, realizou transformações estruturais na governança, combate às fraudes e operação do seguro, garantindo reduções de despesa na ordem de R$ 400 milhões."
Os recursos excedentes acumulados, defende, seriam resultado dessas ações de eficiência, o que teria sido atestado em 2018 pelo então Ministério da Fazenda (hoje Ministério da Economia), ao anunciar a redução do prêmio tarifário para 2019.
A empresa alega ainda que a natureza privada dos recursos excedentes "já foi amplamente debatida e, inclusive, manifestada pelo TCU e por diversos juristas de renome".