Sete em cada dez mulheres
desejam ter um parto normal no início da gravidez. Poucas atingem
esse objetivo. O Brasil é um dos países onde os anseios da mulher
são mais negligenciados na hora de ter um filho. Apesar de estar
rompendo as barreiras da chamada “epidemia de cesarianas”, o país
ainda mantém uma taxa de 55,5% de partos cirúrgicos, quando o
recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 15%. A
luta pelo direito à escolha da mulher ainda enfrenta mitos,
preconceitos e a forte cultura da medicalização.
Na contramão do sistema estabelecido, essa discussão vem
ganhando fôlego nos últimos anos. Em 1985, a OMS divulgou o
primeiro artigo com recomendações para atenção ao parto normal,
movimentando a classe médica a rediscutir suas práticas. Passou-se
a discutir a humanização do parto, isto é, o respeito à mulher como
pessoa em um momento singular da sua vida. É o cuidado também com a
família e o nascimento sadio do bebê.
“Parto humanizado não é moda, não é parir na água, não é
parir em casa. É mais do que isso. O que a OMS preconiza é o parto
em ambiente seguro”, explica o obstetra Thiago Saraiva. Por isso,
práticas até então corriqueiras hoje são consideradas violências
obstétricas. Na visão da diretora do Hospital da Mulher do Recife
(HMR), Isabela Coutinho, a humanização é “olhar a mulher como
gente, respeitar o que ela quer (se deseja andar, sentar, deitar,
etc) e agir baseado em evidências científicas. A mãe e o bebê são
os protagonistas desse momento.”
No HMR, existem nove leitos para parto humanizado, com
infraestrutura para alívio da dor sem uso de medicamentos, como
banheira e aromaterapia. Desde a inauguração, a maternidade
realizou 7,4 mil partos, dos quais 74% foram normais. Cynthia
Siqueira, 22 anos, fez questão de procurar a unidade. “Foi muito
tranquilo. A enfermeira ficou só olhando e orientando”, diz ela,
mãe de segunda viagem. “O meu primeiro parto foi em hospital
particular, mas também foi normal. Tive a sorte de ter um médico
que me encorajou. Antes de ter filho, a gente escuta muita coisa
ruim sobre o parto, pensa que é um bicho de sete cabeças, mas não
é”, diz.
O professor de obstetrícia da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e coordenador da maternidade do Hospital Santa
Joana Recife, Edilberto Rocha, explica que os motivos para a
epidemia de cesarianas no Brasil não é simplório. “O médico é uma
das causas, mas não a única. Há questões culturais e financeiras. O
próprio modelo de assistência brasileiro favorece. Em outros
países, o médico do pré-natal não é o mesmo que assiste o parto”,
diz. No Brasil, os planos de saúde só costumam pagar, em média,
seis horas de parto normal ao médico, ainda que o procedimento dure
mais. Por isso, os custos de um atendimento humanizado na rede
privada pode custar até R$ 20 mil.
Neste ano, a OMS lançou uma cartilha com 56 recomendações de
cuidados para uma experiência de parto positiva, ou seja, que
cumpre ou supera as crenças e expectativas pessoais e
socioculturais prévias da mulher. Na semana do dia das mães, a
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) lançou ação para
reforçar três dessas diretrizes. São elas: não considerar apenas a
dilatação de um centímetro por hora como parâmetro para indicação
de intervenções médicas; evitar procedimentos médicos se a mulher e
o bebê estão em boas condições; e respeitar o direito da
experiência positiva, o que inclui a presença do acompanhante
escolhido, a comunicação clara com a equipe e a liberdade de
escolha da posição para dar à luz. Nas próximas duas páginas, o
Diario conta histórias de mulheres que conseguiram ter as vontades
atendidas no momento de se tornarem mães.
Larissa Oliveira, 29 anos,
já nem contabiliza a quantidade de partos que acompanhou. Da
faculdade de medicina, passando pela residência em ginecologia e
obstetrícia e o exercício da profissão em duas maternidades
públicas, podem ter sido centenas deles. O mais impactante, porém,
aconteceu há quatro meses e de uma forma diferente. Larissa saiu da
condição de médica e encarou o papel de paciente, para se
transformar em mãe. Rodeada de amigos, viu Murilo
nascer.
No dia das mães do ano passado, ela havia anunciado a
gravidez para a família. Desde o princípio, sabia que queria parto
normal. “Entre o meu internato e a residência, pude acompanhar uma
mudança visível na forma como os médicos lidam com o parto e a
mulher nesse momento. Há oito anos, era muito comum a adoção de
procedimentos desnecessários, como deixar a mãe em jejum”, lembra.
Por já trabalhar em uma equipe que preconiza o parto normal,
Larissa encontrou fácil informação e profissionais disponíveis. Fez
até uma poupança para arcar com os altos custos. “O mais importante
para mim era ter a confiança na equipe escolhida”,
explica.
No último dia 4 de janeiro, ela estava em casa quando sentiu
as contações aumentarem. Chamou a doula, também amiga. E decidiu se
ausentar da condição de médica para mergulhar na experiência.
Acabou descobrindo que nem a formação técnica é suficiente para a
realidade. “A gente tem uma expectativa, mas na hora acontece de
outro jeito. Mudou completamente a minha visão de parto. Eu fiz
exatamente como as mulheres que eu assisti: gritei, chorei, chamei
palavrão”, conta. Mesmo antes de regressar ao trabalho, ela já sabe
que algo mudou. “É um choque de realidade. Sempre fui pouco
intervencionista, mas agora serei muito menos.”
É com a propriedade de uma
especialista que a atriz e arte-educadora Anaterra Veloso, 27 anos,
fala sobre o próprio parto. Desde antes da gravidez, ela já vivia
um processo de conexão mais íntima com o corpo e buscava
profissionais para auxiliá-la nessa vivência. A gestação de Anahí
foi como o ápice dessa revolução. A menina de um ano e nove meses
nasceu em casa, dentro de uma piscina inflável, acompanhada da mãe
e do pai. Escolha consciente e orientada.
Foi conhecendo o relato de uma amiga que Anaterra decidiu ter
um parto domiciliar. A pesquisa Nascer no Brasil, realizada pela
Fiocruz, mostra que apenas cerca de 5% dos partos que acontecem no
país são sem nenhuma intervenção. Gestantes com gravidez de baixo
risco, ou seja, sem complicações, sem doenças associadas como
diabetes e hipertensão, com bebê a termo e que entrem em trabalho
de parto não induzido podem ter o parto em casa. Porém, os mitos e
preconceitos ainda são grandes.
Anaterra teve o apoio determinante da doula e das enfermeiras
obstetras do Demáter. Ao longo da gestação, devorou livros, filmes,
buscou informações com especialistas e em sites de confiança na
internet. Frequentou encontros com outras mulheres para tirar
dúvidas e abandonar medos. Dessa forma, pode compreender cada
mínima etapa do que é chamado de parto ativo. Inclusive que o
universo do parto é cheio de ramificações. Até mesmo o parto
domiciliar têm duas vertentes.
Cada passo do nascimento de Anahí estava previsto no plano de
parto, um documento que detalha todas as escolhas da mulher no
pré-parto, parto e pós-parto e orienta os profissionais. Caaso
houvesse alguma intercorrência no plano A, havia plano B
(transferência para um hospital de não-emergência) e plano C
(transferência par um hospital público de emergência). Havia ainda
um médico obstetra de backup.
No dia do nascimento do bebê, dois amigos ficaram de plantão
para realizar as tarefas domésticas. Foram 14 horas de trabalho de
parto, acompanhadas pelo marido e com som ambiente escolhido por
Anaterra. “Quando ela nasceu, foi a coisa mais linda do mundo. Você
vê o bebê e pensa: quero ter mais”, conta.
Filmes para ver
O Renascimento do parto
Olmo e a gaivota
O começo da vida
Livros para ler
Parto Ativo
Origens mágicas, vidas encantadas
O parto na água
Parto com amor
Cerca de nove em cada 10
partos nos hospitais privados brasileiros são cesarianas. As
discussões sobre os direitos reprodutivos femininos têm levado as
instituições a repensarem a estrutura disponível para partos
humanizados. Segundo o Ministério da Saúde, desde a implantação da
estratégia Parto Adequado, lançada pela Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), o Hospital Israelita Albert Einstein e o
Institute for Healthcare Improvement (IHI), há uma queda nos partos
cirúrgicos. Na Região Metropolitana do Recife (RMR), duas
instituições aderiram ao programa.
O Parto Adequado identifica modelos inovadores de atenção ao
parto e promove mudanças no cuidado, a partir de práticas baseadas
em evidências científicas. Para isso, são realizadas adequações nas
unidades hospitalares, como criação de espaços específicos para
parto humanizado, capacitação do corpo técnico e projetos de
conscientização das gestantes. O Hospital Guararapes (HG), em
Jaboatão dos Guararapes, foi o primeiro do estado a aderir, em
2017.
“A capacitações ocorrem desde a direção até o administrativo.
Fazemos reuniões mensais com a equipe da estratégia e alimentamos
toda semana uma base de dados”, explica a médica coordenadora
obstétrica do HG, Helaine Rosenthal. O hospital realiza 400 partos
por mês, dos quais 65% são normais. A unidade tem sala própria para
partos humanizados, com equipamentos como bola suíça e equipe
multidisciplinar disponível 24 horas, com enfermeiras obstetras e
doulas.
A porta de entrada pode ser através do ambulatório SUS da
unidade, por meio de médicos cadastrados ou na emergência. O valor
cobrado, em caso de partos particulares com os profissionais do
hospital, chega a ser metade dos custos médios do mercado. Lá
também são realizadas rodas de gestantes para sensibilização,
divulgadas sempre no site.
Neste ano, o Hospital Santa Joana Recife também ingressou no
Parto Adequado. Há cerca de cinco anos, a maternidade já havia
passado por adequações organizacionais e físicas, criando oito
apartamentos para parto humanizado. Eles ficam no mesmo andar do
bloco cirúrgico e dispõem de equipamentos de neonatologia. Durante
o parto, uma sala cirúrgica também fica bloqueada para casos de
intecorrência. Para parir nos apartamentos, que disponibilizam
métodos não farmacológicos para alívio da dor, é cobrada uma taxa
extra.
“Nós contratamos também uma equipe de médicos para ficarem
disponíveis sete dias por semana, em caso de a paciente não ter
médico assistente. Embora, orientemos as mulheres a chegarem já com
um profissional”, diz o coordenador da maternidade do HSJR e
professor de obstetrícia da UFPE, Edilberto Rocha. Lá, as doulas
também são presença oficializada. A taxa média de partos normais da
unidade é de 15% e, segundo Edilberto, vem aumentando.
Neste mês, o Real Hospital Português (RHP) também passou a
disponibilizar uma sala adaptada para parto humanizado, onde a
mulher pode ficar com quantos acompanhantes desejar e dispõe de
banquetas, bolas, espaldar, som ambiente. Nesse local, não é
permitida a analgesia. Dentro do bloco cirúrgico, também há uma
sala igual, para casos de contraindicação de permanecer em
apartamento. Lá, entram um acompanhante e um profissional
assistente, como doula ou enfermeira obstetra. Também é cobrada uma
taxa complementar.
“A gente pretende construir uma sala PPP (pré-parto,pós-parto
e puerpério) e iniciamos a reforma da emergência. Também temos uma
enfermeira obstetra plantonista desde dezembro e estamos
capacitando e sensibilizadno a equipe”, afirmou o coordenador
médico do RealMater, Eduardo Coutinho. A unidade conseguiu aumentar
de cerca de 3% para 10% a taxa de partos normais
realizados.
O papel que cabe ao pai
quando elas são as grandes protagonistas
O primeiro pilar de um
parto humanizado é o protagonismo da gestante. A participação do
companheiro ou da companheira de quem vai parir, no entanto, é
fundamental, segundo as mães. Porém, essa presença muitas vezes
esbarra no preconceito e no machismo. Falta incentivo e compreensão
da família, de amigos e, principalmente, do mercado de trabalho em
relação ao assunto. "Tem-se a ideia de que homem não é para isso,
que a preparação para o parto uma tarefa exclusiva da mulher, mas
no parto humanizado, a presença do pai é essencial", ressalta a
jornalista Gleiciani Nogueira, 34 anos. O marido dela, Gleyvson
Ferreira, 37, a acompanhava em todas as consultas pré-natal, nas
rodas de conversa em grupos de gestantes e nas consultorias com uma
doula.
A primeira filha do casa, Maria, de 6 meses, nasceu de parto
normal humanizado. A equipe respeitou o plano de parto criado pela
jornalista. Tocava Ave Maria quando a menina nasceu. Era o anúncio
do milagre pessoal que Gleiciani e Gleyvson viviam após dois
abortos espontâneos. "Tive duas perdas gestacionais. Só depois
descobri a trombofilia. Por causa dos abortos, achei que seria
impossível ter um filho por parto normal. Se eu fosse acreditar no
que diziam os médicos para não tentar um parto normal por causa
desse histórico, não teria tomdo essa decisão", conta.
O que a "salvou" das informações que a desistimulavam a ter
um parto natural foi o fato de ter se cercado de informações.
"Informação é a palavra chave para um parto humanizado. Li muito,
frequentei muitas oficinas e rodas de gestantes para fazer minhas
escolhas. Se eu puder aconselhar outras mães, diria isso: estudem,
leiam, se informem sobre seus direitos. Isso associado a uma equipe
que acredite nesse tipo de parto, pois a palavra do médico é muito
forte nesse momento. Você se sente mais segura se tiver com
profissionais que pensam como você", pontua.
O normal é não precisar
medicar para ter filho
Parto humanizado não é
sinônimo de parto normal. "A humanização do parto vem do fato de
ele deixar de ser medicalizado. Há três pilares para isso. O
primeiro é o protagonismo da mulher na escolha da via de parto,
então ela deve ser informada para que ela possa tomar uma decisão,
e a escolha deve ser respeitada. O segundo é a obediência às
evidências científicas. O terceiro é o acompanhamento
multiprofissional, que ela possa ter acesso a um fisioterapeuta
para a preparação do assoalho pélvico, um nutricionista caso
precise perder peso, a um pediatra que discuta as intervenções no
bebê, além de uma doula, que são mulheres que ajudam outras
mulheres nesse processo", explica o obstetra Thiago Saraiva. Se
houver indicação de que a cesárea vai salvar mãe e bebê, é
obrigação da equipe médica informá-la. Foi o que aconteceu com a
consultora de imagem Priscilla Lobato, 35 anos.
Depois de 14 horas de trabalho de parto, sendo seis com nove
centímetros de dilatação (dos dez necessários para o parto
vaginal), precisou ser encaminhada para uma cirurgia. "Eu sempre
quis ser mãe, queria um parto humanizado, mas desejava um parto
normal. Fiz uma preparação intensa para isso e jamais agendaria um
parto, apesar de saber que sempre existe a possibilidade de
terminar em uma cesáream. Eu queria tentar e tentei. Esperei entrar
em trabalho de parto. Passei por todas as fases dele. As primeiras
contrações, a evolução até os nove centímetros de dilatação. Quando
a equipe do doutor Thiago, em quem confio e que tem uma taxa de
cesárea baixíssima, indicou a mudança de planos, sabia que aquele
era o melhor caminho", conta.
"Foi um parto extremamente respeitoso. Eu vi tudo, como tinha
pedido. Estava tocando a música Aleluia, como pedi. Deixaram a
minha filha sobre o meu corpo. Meu marido cortou o cordão
umbilical. Saímos todos juntos do bloco cirúrgico. Parto humanizado
não é só parto normal, é o respeito pela mulher e pela criança a
todo o momento. Foi o que tive",
destaca.