Por sua dimensão e relevância na
vida do Brasil, o setor segurador brasileiro, nele incluídos o
seguro, a previdência complementar aberta, a capitalização e a
saúde suplementar, tem exigido avanço consistente do Direito do
Seguro. Considero de suma importância a discussão dos temas desse
campo do conhecimento tão rico em sua dimensão teórica e tão
importante para nossa atividade. Peço licença para, como economista
que sou por formação, abordar e comemorar a progressiva
incorporação dos fundamentos e avanços teóricos e metodológicos da
Economia dos Seguros ao Direito Securitário.
Essa mescla de especialidades tem
servido para o melhor entendimento e superação da judicialização
que ainda impacta fortemente o mercado de seguros, a começar por
extinguir o mito que atribui a judicialização exclusivamente a
falhas regulatórias. Felizmente, hoje cresce o entendimento de que
é exatamente o contrário: quanto mais se regula, quanto mais se
desce a minúcias em cada parágrafo de um contrato, mais se estimula
a busca por brechas. Derivada dessa primeira interpretação
equivocada, vem um segundo mito: a existência de “letras miúdas”
nos contratos que impedem a compreensão do conteúdo pelo
consumidor. Em uma inequívoca demonstração da inutilidade do
excesso de regulação, essa avaliação continua a guiar a opinião
pública sobre a transparência dos contratos, embora desde 2009
vigore instrução normativa (1) que determina até a fonte e o
tamanho da letra a ser utilizada em tais contratos – Times New
Roman 12 – utilizada pela maior parte dos veículos impressos de
comunicação. A inteligência do consumidor é subestimada a ponto de
levar a ANS a editar o “Guia de Leitura Contratual”, de motivação
autoexplicativa, igualmente editado em Times New Roman
12.
Sem querer correr – e já
correndo – o risco de cair no extremo oposto, considero que toda
regulação governamental deveria inspirar-se na Constituição dos
Estados Unidos da América, que tem sete artigos e recebeu apenas 26
emendas ao longo dos últimos dois séculos. Esclareço, portanto, que
meu objetivo neste artigo não é negar o avanço que representou a
passagem de uma lógica regulatória totalmente prescritiva para a
atual, mais preocupada com princípios. Essa sempre foi uma
reivindicação das seguradoras, que têm, atualmente, uma
flexibilidade inédita na criação e comercialização de produtos –
exceção feita à saúde suplementar, que será abordada
adiante.
O ponto é que, em seu conjunto, os
avanços recentes feitos pela Superintendência de Seguros Privados
(Susep) não deverão ter maior impacto sobre a receita anual do
setor, hoje equivalente a 6,7% do PIB (ou 3,7%, excluindo-se a
Saúde Suplementar). E isso não acontece porque a população
brasileira não tenha a cultura do seguro. A ausência dessa cultura
tornou-se uma lenda – mais uma! –, como demonstram os números. Em
plena pandemia da Covid-19, o setor confirmou a tendência de
crescimento acima do Produto Interno Bruto (PIB) per capita. Até
agosto de 2021, os seguros patrimoniais apresentaram crescimento de
17,2% sobre o mesmo período do ano anterior e, dentre eles, os
residenciais responderam por aumento de 16%. O seguro prestamista,
que garante a quem perde o emprego a possibilidade de honrar seus
compromissos elencados em contrato, registrou aumento de 14,7%. Ou
seja, não se trata de uma população que não entende a importância
do seguro, mas de uma população que não tem acesso a esse
importante mecanismo de proteção social.
Os números falam por si. De 2011 a
2020, a economia brasileira praticamente ficou estagnada, com
crescimento residual de 0,3%. Em 2020, o consumo das famílias
despencou 5,5% em relação a 2019, e este ano caiu mais 1,7% no
primeiro trimestre. 73% dos brasileiros ganham até dois
salários-mínimos. É esse o pano de fundo, e é preciso ouvir o que
pensa, quer e pode esse consumidor. Dois exemplos objetivos, que
explicito a seguir, explicam o problema que considero mais
importante: o microsseguro, voltado para o atendimento às camadas
mais vulneráveis da população, e o seguro-saúde.
O microsseguro é uma salvaguarda
para o patrimônio das pessoas com renda menor e pode reduzir o
impacto negativo dos imprevistos financeiros em suas vidas. É,
também, um produto que tem vocação para complementar os programas
de proteção social do Estado. No entanto, embora reconhecendo os
avanços do marco regulatório dos microsseguros editado em agosto
deste ano, e tendo por óbvio que ainda é cedo para avaliar seu
impacto, volto a bater em uma tecla importante: é preciso promover
mudanças na distribuição e nos custos de transação da oferta de
tais produtos. A redução desses custos é a chave para atender a
quem mais necessita, fazendo o produto chegar a quem mais
precisa.
O acesso é também o grande desafio
para a saúde suplementar, segmento que enfrenta ainda uma
regulamentação pesada e antiga. É preciso uma discussão que não se
limite ao formalismo do marco legal, mas que vá ao encontro do que
a população diga necessitar. Precisamos facilitar a vida das
pessoas, inclusive incrementar a transparência dos resultados das
linhas do cuidado assistencial e o acesso à tecnologia digital.
Acompanhei de perto as discussões
que resultaram na Lei nº 9.656, de 1998. Passaram-se 23 anos e
continuamos às voltas com as mesmas questões. As falhas
regulatórias são as mesmas, as falhas de compreensão também. Não se
pode esquecer que o setor privado de saúde nunca vai abranger a
população inteira. Para isso, existe o SUS. Mas o sistema privado
precisa abrir acesso, ser mais inclusivo, para que ele possa
atender melhor as pessoas e incluir o maior contingente possível da
população.
Para contribuir nesse debate,
listo aqui três pontos que, a meu ver, devem ser prioritários na
estratégia de aumentar a abrangência da saúde
suplementar.
- Racionalidade da incorporação tecnológica: é preciso haver um
sistema de avaliação independente de custo-benefício da introdução
de procedimentos, medicamentos, equipamentos, tecnologias.
Repetindo, somos uma sociedade pobre. Dar acesso a mais gente exige
racionalização e redução de custos.
- Prioridade para a atenção primária: é preciso reduzir o uso das
tecnologias caras para garantir o básico a mais gente.
- Revisão do modelo de remuneração dos serviços médicos: o setor
é intensivo em capital, em tecnologia, e remunera por quantidade,
em vez de qualidade e cada vez mais isso drena recursos para uma
medicina mais sofisticada, tirando espaço da atenção primária de
saúde.
Estamos vivendo a promessa de uma
revolução no sistema de seguros. O open insurance, que a exemplo do
que começa a ocorrer no open finance, promete facilitar as
transações entre partes para dar maior poder de escolha às
pessoas. É aí que entra um tema inescapável: a subsegmentação
– ou modulação de coberturas. Lembremos que a citada Lei nº 9.656
foi automaticamente modificada por Medida Provisória, assemelhada
aos Decretos-Leis do período pré-democratização. O tema então havia
saído da Câmara em 1998, com um texto que obrigava as empresas a
oferecer o plano completo, com consultas, exames e internação,
porém podiam ter em carteira outros produtos. Ou seja, o consumidor
podia optar. O resultado final, que incorporou 44 edições da Medida
Provisória, fez com que o assunto resultasse em um modelo engessado
que vigora até hoje.
Teoricamente (mais um mito), só
podem existir cinco tipos de plano: planos referência (os
completos), ambulatorial, hospitalar com ou sem obstetrícia e
odontológico. As regras atuais permitem apenas fazer combinações
entre as segmentações assistenciais disponíveis e, ainda assim, na
prática, existem apenas os planos referência e os odontológicos.
Com a subsegmentação, seria possível oferecer produtos adequados às
necessidades e às capacidades de pagamento de cada indivíduo ou
empresa.
Com a chance de nova formatação nas
coberturas, poderiam ser ofertados produtos verdadeiramente
ambulatoriais, que cobririam consultas e exames simples, assim como
opções específicas para terapias, produtos odontológicos e
hospitalares – para os quais, é bom registrar, fica preservada a
mesma cobertura prevista no atual arcabouço regulatório e legal. A
cobertura de urgências e emergências, assim como a de exames e
terapias complexas, deve estar vinculada exclusivamente aos
produtos hospitalares, sob pena de inviabilizar os ambulatoriais,
como ocorre atualmente.
Precisa ser considerada também a
alternativa de o conjunto de procedimentos e eventos em saúde
cobertos pelos planos poder variar conforme a região. É importante
que as operadoras possam modular o que é ofertado, a fim de adequar
disponibilidades e preços regionalmente. Isso permitiria maior
quantidade de opções de produtos oferecidos. Um maior grau de
liberdade certamente produzirá melhores resultados para todos,
dentro de uma estratégia mais vantajosa para o consumidor: quanto
mais escolhas, mais condições haverá para viabilizar a cobertura de
saúde que se adapte a suas necessidades diante de suas
possibilidades orçamentárias.
Para viabilizar a flexibilização,
os contratos deverão ser ainda mais claros, explicitando os
procedimentos cobertos e excluídos. Também deverão se consolidar
práticas como a coparticipação, que faz o consumidor ter
conhecimento e arcar com parte do custo de cada procedimento. São
mudanças que certamente contribuirão para o avanço da medicina
privada no Brasil, beneficiando mais consumidores e contribuindo
para desafogar o sistema público de saúde.
Como contraponto, e para lembrar o
potencial desse mercado, gostaria de lembrar como a saúde privada
brasileira avançou nesse período. De 2007 a 2020, a arrecadação da
saúde privada cresceu 4,5 vezes. Estamos falando de uma taxa
superior a 10% ao ano. O PIB cresceu 70%, ou uma taxa anual de
1,3%. Isso quer dizer que o volume de consultas, exames, terapias,
internações, atendimentos, medicamentos, equipamentos, tecnologias
cresceu naquela fantástica proporção. Houve então um extraordinário
avanço no cuidado da saúde das pessoas. E não foi só em volume. Foi
em qualidade também. Isso está investido em infraestrutura médica,
tecnologia, cuidado, pessoal. A medicina brasileira não tem nada a
dever à praticada no resto do mundo, inclusive a dos países mais
desenvolvidos. Os hospitais e laboratórios privados, que estão
nesses números de crescimento, clínicas de diagnóstico,
profissionais de saúde, toda essa imensa engrenagem é remunerada
com o dinheiro das pessoas que contratam planos e seguros de
saúde.
Do mesmo modo, o desempenho recente
dos microsseguros mostra enorme potencial desse segmento. Ainda que
com todas as limitações, entre 2016 e 2020, os prêmios dos produtos
classificados nos ramos de microsseguros no Brasil cresceram mais
de 55%, passando de R$ 228,4 milhões para R$ 355,4 milhões nesse
período, avanço quase duas vezes superior ao observado para o
segmento de Danos e Responsabilidades, que cresceu 29%. No mesmo
período, o número de seguradoras que emitiram prêmios de
microsseguros, passou de 17 para 24, em 2020. Outro sinal
importante é que outros produtos, que não estão classificados
formalmente como microsseguros, vêm ganhando apelo junto às
populações com renda mais baixa, como o residencial, que entre 2016
e 2020, cresceu 35%.
Estas considerações são mais uma
contribuição do setor de seguros à inclusão de mais brasileiros ao
fundamental sistema de proteção contra riscos. Lembramos que, com
ativos financeiros da ordem de R$ 1,3 trilhão, o equivalente a
23,5% da dívida pública brasileira, o setor é parceiro estratégico
do poder público em áreas nevrálgicas como a infraestrutura.
Lembramos também, no entanto, que investimentos privados demandam
ambiente de segurança jurídica e previsibilidade, regido por marcos
regulatórios atualizados. A CNseg reconhece as dificuldades
atravessadas pelo Brasil, lembrando que, nas últimas décadas,
redemocratizamos o País, derrotamos a hiperinflação, resistimos a
grandes terremotos financeiros internacionais, fizemos as reformas
trabalhista e da previdência e avançamos na regulação de serviços
essenciais, como energia, telefonia e saneamento. Neste final de
2021, queremos reafirmar a confiança em nosso País.
*Marcio Serôa de Araujo
Coriolano é economista e Presidente da CNseg, a Confederação
Nacional das Seguradoras
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https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/dipro/2009/int0020_29_09_2009.html
-
https://cnseg.org.br/publicacoes/conjuntura-cnseg-n56.html
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https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1998/lei-9656-3-junho-1998-353439-publicacaooriginal-1-pl.html