Como
o seu próprio nome leva a crer, a Lei Geral de Proteção de
Dados (Lei 13.709/2018) incide de forma
transversal [1].
Significa dizer que o segurador, na posição de um “agente de
tratamento de dados”, terá de: 1) apoiar-se em uma base legal para
tratamento de dados pessoais; 2) respeitar os princípios e direitos
do titular de dados; 3) cumprir com as suas obrigações; e 4)
sujeitar-se à responsabilização, caso provoque danos
injustos [2].
Além
desses itens, que poderiam ser decompostos em vários subitens,
existem outros pontos importantes relacionados à aplicação da LGPD
no setor de seguros, como o período de tratamento dos dados pelo
segurador, as sanções administrativas na prática, a possibilidade
de condução de auditorias pela Autoridade Nacional de Proteção de
Dados (ANPD) e/ou pela Superintendência de Seguros Privados
(Susep), bem como os contornos do relatório de impacto de
proteção de dados exigível do segurador.
Tendo em vista o espaço limitado desta coluna, porém, optou-se por
tirar da sombra apenas um entre os aspectos mais tormentosos da
matéria sob exame: as bases legais de tratamento de dados pelos
seguradores, em especial nos períodos de subscrição e regulação de
sinistro nos seguros de vida. É o que segue.
No
caso de dados pessoais (não sensíveis) [3],
a legitimidade do tratamento pelo segurador poderá ter como
alicerce um dos seguintes três requisitos: 1) a necessidade para
a “execução de contrato ou de procedimentos
preliminares” relacionados ao contrato, desde que a
pedido do titular dos dados (artigo 7º, inciso V); 2) os
“interesses legítimos” do controlador ou de terceiros (artigo
7º, inciso IX); e 3) o consentimento dado pelo titular (artigo 7º,
inciso I) [4].
Note-se que, em relação aos dados pessoais não sensíveis, o
legislador brasileiro de nenhuma forma hierarquizou as bases legais
de tratamento, sendo todas elas dispostas em diferentes incisos (I
a X) do artigo 7º da LGPD.
Já a
legitimidade para o tratamento dos dados
sensíveis (que, na definição legal disposta no artigo 5º,
inc. II, abrange qualquer “dado pessoal sobre origem
racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a
sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou
político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou
biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”) deve ser
extraída do artigo 11 da LGPD.
Uma
sucinta comparação entre os dispositivos em causa demonstra que o
artigo 11 não possui regramentos correspondentes à
“necessidade” para o programa contratual (artigo 7º, inciso V)
e atendimento aos “interesses legítimos” do segurador (artigo
7º, inciso IX) como fatores permissivos ao tratamento de
dados [5].
Nesse sentido, embora o tratamento de dados sensíveis, nomeadamente
os de saúde, seja essencial para a “execução do contrato” de
seguro de vida, a LGPD não permite o uso da mencionada base legal
de tratamento de dados pelo segurador.
Com
efeito, é preciso extrair do artigo 11 da lei a base legal para o
tratamento de dados de saúde pelo segurador. Eis, no que aqui
interessa, os seus termos: “O tratamento de dados pessoais
sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes
hipóteses: I – quando o titular ou seu responsável legal
consentir, de forma específica e destacada, para finalidades
específicas; II – sem fornecimento de consentimento do
titular, nas hipóteses em que for indispensável para: a)
cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;
(…) d) exercício regular de direitos; e) proteção da vida ou
da incolumidade física do titular ou de terceiro; f) tutela da
saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais
de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária; ou g) garantia
da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de
identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos
(…)”. Os dados sensíveis referentes à
saúde possuem um regramento ainda mais rigoroso, sendo
expressamente vedado o uso compartilhado desses dados com o
objetivo de obter vantagens econômicas, salvo algumas exceções
(artigo 11, §4º e § 5º) [6].
O
consentimento específico e em destaque (artigo 11, inciso I), para
“finalidades específicas”, permite o tratamento de dados de saúde
do (candidato a) segurado. Diante da atual dinâmica de contratação
dos seguros coletivos
(segurador — estipulante — segurados), porém, a
recolha de consentimento afigurar-se-ia medida desafiadora para os
seguradores, que, muitas vezes, praticamente não têm contato direto
com os segurados. Portanto, é preciso investigar se o consentimento
seria essencial ou se o segurador poderia se valer de outra base
legal disposta no artigo 11 da LPGD.
Nesse particular, convém advertir que, embora a LGPD tenha se
inspirado no General Data Protection
Regulation (Regulamento Europeu 2016/679, ou GDPR),
inclusive no que se refere às bases legais para o tratamento de
dados, a interpretação dos seus conceitos dependerá das balizas que
a ANPD, o Poder Judiciário e a doutrina brasileira irão fornecer ao
longo dos próximos meses e anos. Por ora, impõe-se reconhecer que
há mais dúvidas do que certezas sobre qual a amplitude que será
dada a conceitos indeterminados presentes na lei, como é o caso da
“tutela da saúde” e do “exercício regular de direitos”,
dispostos no artigo 11, inciso II, alíneas “d” e “f”.
Em
recente Código de Boas Práticas, feito pela Confederação Nacional
de Saúde, com a coordenação científica dos professores Laura
Schertel Mendes e Danilo Doneda, pode-se colher, no capítulo
dedicado ao compartilhamento de dados entre estabelecimentos de
saúde e operadoras de planos de saúde, as seguintes
recomendações: “BOAS PRÁTICAS. Operadores de serviços de
saúde: – Buscar o consentimento dos pacientes para requerer o
compartilhamento de dados de saúde (quando não for base legal de
cumprimento regulatório), esclarecendo a finalidade e aplicando a
minimização de dados (…)” [7].
Portanto, a recomendação do indigitado código é no sentido de
recolha do consentimento do titular de dados (paciente/segurado).
Para chegar a essa conclusão, os autores recordam o artigo 1º da
Resolução CFM nº 1.605/2000 (“O médico não pode, sem o
consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou
ficha médica”), bem como enfatizam que o consentimento
seria necessário basicamente por não haver outra hipótese legal que
permitiria a coleta de dados de saúde. Seja pelo fato de a base
legal de “tutela da saúde” só poder ser utilizada se
os “dados forem tratados por ou sob a responsabilidade de
um profissional sujeito à obrigação de sigilo profissional”,
seja pelo fato de a base legal de “exercício regular de
direitos” estar ligada à “manifestação no âmbito
de processos judiciais, administrativos ou arbitrais”, salvo
em casos de “cumprimento de obrigação legal ou
regulatória”, a coleta do consentimento seria imprescindível
para legitimar o tratamento de dados de saúde pelos seguradores e
operadoras de planos de saúde [8].
Indo
além, defendem os aludidos professores, em plano abstrato, a
necessidade de o controlador privilegiar a obtenção do
consentimento para o tratamento de dados sensíveis: “É
importante notar, ainda, que a Lei Geral de Proteção de Dados
trouxe uma regra especial quanto ao tratamento de dados pessoais
sensíveis no seu artigo 11, privilegiando o uso do consentimento em
detrimento das demais bases legais da lei. Isto porque o
legislador, ciente da importância e da criticidade deste tipo de
informações, privilegiou a transparência e a informação ao titular
dos dados em relação ao uso dos seus dados” [9].
De
fato, o legislador brasileiro conferiu abordagem destacada para a
base legal do consentimento, no caso de tratamento de dados
sensíveis, ao contrário do que ocorreu no âmbito dos dados não
sensíveis. Para tanto, basta observar a expressão “sem
fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for
indispensável para (…)”, prevista no artigo 11, inciso II, da
LGPD.
O
segurador não poderá desconsiderar esse elemento. De igual sorte,
deverá levar em conta outros aspectos
relevantes — e.g., 1) haverá transferência
internacional de dados?; 2) para quais finalidades esses dados
serão tratados?; 3) há uma legítima expectativa do segurado em
relação ao tratamento de tais dados pelo segurador? Esses são
alguns dos parâmetros que auxiliarão o segurador na escolha da base
legal de tratamento de dados.
Nesse particular, é muito ecoada a crítica doutrinária no sentido
de que a base legal do consentimento poderia deixar o controlador
em situação delicada, caso o titular de dados viesse a revogar o
seu consentimento. Será que o segurador estaria vinculado a cumprir
com a sua prestação sem tratar os dados de saúde do consumidor?
Bem
vistas as coisas, havendo a recusa de consentir o tratamento de
dados de saúde pelo candidato a segurado ou a opção pela revogação
superveniente do consentimento pelo segurado, a seguradora que atua
no ramo vida restaria impossibilitada de prestar o seu serviço.
Como destaca a doutrina especializada, “a realização da
prestação do segurador se tornaria impossível por fato imputável ao
credor (da indenização), sendo consequência natural a resolução do
contrato”, havendo, ainda, a possibilidade
de “oposição de exceção de contrato não
cumprido” [10].
Em
outras palavras, caso a base legal justificadora do tratamento de
dados seja o consentimento, o segurador poderá recusar a
contratação de segurado que não o dê, ou poderá resolver o
contrato, se o segurado revogar o seu consentimento ao longo da
contratação, sem sofrer qualquer sanção pelo ordenamento
jurídico.
No
que se refere à outra comum crítica acerca do uso da base legal do
consentimento — qual seja, a da sua banalização, havendo
uma “hipertrofia do consentimento” [11],
não teria melhor sorte quem tentasse se valer dela para afastar a
coleta do consentimento do segurado, diante da constatação de que
as outras supostas bases legais aplicáveis (leia-se, “tutela da
saúde” ou “exercício regular de direito”) não são confiáveis
para o segurador, máxime no âmbito da subscrição e regulação do
sinistro.
Impõe-se, nesse sentido, concluir que, ao menos por ora, o
consentimento será a base prioritária de tratamento de dados de
saúde nos seguros de vida. Sem embargo, as seguradoras deverão se
atentar ao fato de que, mesmo quando os titulares de dados derem o
seu consentimento, elas terão que observar, para além dos
princípios da boa-fé objetiva e da confiança, as legítimas
expectativas dos segurados e o contexto no qual o respectivo
consentimento foi dado.
[1] A lei abrange as seguradoras e resseguradoras
brasileiras e estrangeiras que atuem no mercado nacional. O artigo
3º é claro ao estipular que não importa o meio, o país da sede ou o
local onde estejam localizados os dados, a oferta ou o fornecimento
de serviços, bem como a coleta ou a operação de tratamento de dados
realizados no Brasil, inclusive pela internet, fazem incidir a
lei.
[2] MENDES, Laura Schertel; DONEDA, Danilo. Reflexões
iniciais sobre a nova Lei Geral de Proteção de
Dados. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo,
ano 27, v. 120, p. 471-472, nov./dez. 2018.
[3] Dado pessoal, na dicção do artigo 5º, inc. I, da LGPD,
é toda e qualquer informação “relacionada a pessoa natural
identificada ou identificável”. Entre outros incontáveis dados
pessoais, podem ser citados: nome completo, números de identidade e
CPF, nacionalidade, data de nascimento, estado civil, profissão,
endereço, altura, gênero, peso, endereço IP e dados locacionais.
Ressalve-se que tais dados podem tornar-se sensíveis em alguns
contextos, cf. MULHOLLAND, Caitlin. Os contratos de seguro e a
proteção dos dados pessoais sensíveis. In: GOLDBERG, Ilan;
JUNQUEIRA, Thiago. Temas Atuais de Direito dos
Seguros. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 82 e
ss.
[4] Na esteira da definição legal, não é qualquer
consentimento para o tratamento de dados pessoais que será
considerado válido, mas apenas o fruto de uma manifestação livre,
informada e inequívoca, pela qual o titular anui ao tratamento para
uma determinada finalidade (artigo 5º, inc. XII, da LGPD).
Autorizações genéricas serão consideradas nulas (artigo 8º, §
4º, da LGPD) e, em se tratando de dados sensíveis, o consentimento
requerido é qualificado. De resto, não se pode olvidar que o
segurador poderá, ainda, tratar os dados pessoais do segurado
visando, por exemplo, o “cumprimento de obrigação legal ou
regulatória” (artigo 7º, inc. II) ou “o exercício regular de
direitos em processo judicial, administrativo ou
arbitral” (artigo 7º, inc. VI).
[5] Sobre o tema, afirma Carlos Nelson Konder: “Para o
legislador, os interesses patrimoniais envolvidos nesses casos não
justificaram o risco intrínseco ao tratamento de dados sensíveis do
titular”. KONDER, Carlos Nelson. O tratamento de dados sensíveis à
luz da Lei 1.709/2018. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA,
Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e
suas repercussões no Direito brasileiro. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2019. p. 458.
[6] Artigo 11. §4º, da LGPD: “É vedada a comunicação ou o
uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis
referentes à saúde com objetivo de obter vantagem econômica, exceto
nas hipóteses relativas a prestação de serviços de saúde, de
assistência farmacêutica e de assistência à saúde, desde que
observado o § 5º deste artigo (…), e para permitir: I – a
portabilidade de dados quando solicitada pelo titular; II – as
transações financeiras e administrativas resultantes do uso e da
prestação dos serviços de que trata este parágrafo”. § 5º “É
vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o
tratamento de dados de saúde para a prática de seleção de riscos na
contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e
exclusão de beneficiários”. O parágrafo quinto é endereçado aos
planos privados de assistência à saúde, não se aplicando aos
seguros de vida e às demais modalidades securitárias reguladas pela
SUSEP.
[7] Confederação Nacional de Saúde. [Código de Boas
Práticas] Proteção de Dados para Prestadores Privados em Saúde.
Coordenação Científica: MENDES, Laura Schertel; DONEDA, Danilo et
al. 2021.
p. 93. (Destacou-se).
[8] Ibid. pp. 74-75.
[9] Ibid. p. 92. (Destacou-se).
[10] MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. O contrato de seguro
e a Lei Geral de Proteção de Dados. In: Revista dos
Tribunais, vol. 1018/2020. pp. 8-9. (versão on-line).
(Destacou-se).
[11] BIONI, Bruno. Proteção de Dados Pessoais: a função e
limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 170