O Hospital Israelita Albert
Einstein, em São Paulo, foi o primeiro a diagnosticar a chegada do
novo coronavírus no País, em 25 de fevereiro. Desde então, passou a
ser uma referência na Covid-19 — não apenas pelos protocolos
experimentais que implementa de forma pioneira, mas também pelo
trabalho que executa em unidades públicas municipais de São Paulo.
A instituição faz a gestão do primeiro hospital de campanha a
entrar em funcionamento na cidade, no Estádio do Pacaembu, e tem 2
mil médicos atuando como voluntários na crise.
Esse é um motivo de orgulho para o
seu presidente, Sidney Klajner (foto), que diz ter
ficado surpreso com a dimensão da pandemia. “Se alguém disser que
imaginava o que estava para acontecer, está mentindo”, diz em
entrevista à IstoÉ. Ele elogia a
atuação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e diz que sua
eventual saída seria uma perda. Alerta que ainda não conhece os
efeitos da doença nas regiões mais carentes, pois nelas ainda não
começou a expansão no número de contaminados. Isso vai depender de
a quarentena estar sendo feita da maneira adequada. “Os próximos
dias vão dar a projeção do que está acontecendo”.
O presidente ameaça demitir o
titular da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O ministro está fazendo
um bom trabalho para combater a crise?
O Ministério da Saúde tem tido uma
posição bastante serena e cumpre as recomendações de órgãos como a
Organização Mundial da Saúde. Eles indicam a importância do
isolamento sobrepujando a preocupação com o prejuízo econômico dos
países. Como profissionais de saúde, consideramos que a prioridade
é a vida, a preservação da capacidade de atender as pessoas. Esse é
o tom do Ministério da Saúde, do ministro, com quem o Einstein,
enquanto organização filantrópica e um dos cinco hospitais de
excelência que têm parceria com o ministério, vê uma postura bem
agregadora. É uma forma de não causar pânico à população, mas
trazer a importância daquilo que está sendo prescrito pelas
entidades de saúde.
Como o sr. avalia a possível
saída dele do Ministério?
Vejo como uma perda desse grau de
atuação bastante profissional, abrangente. Infelizmente chegou a
uma queda de braço de uma questão que no meu modo de ver não
existe, de privilegiar um lado ou outro. Obviamente o Ministério da
Saúde está olhando para o que aconteceu em outros países. Nas duas
últimas semanas, a quarentena no Estado de São Paulo já demonstrou
o benefício que vai proporcionar. Já é possível vislumbrarmos uma
tendência de diminuição na porcentagem do incremento do número de
casos — pelo menos no setor privado.
Um dos cotados para substituir
Mandetta, o ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, defende
isolamento apenas de idosos e grupos de risco. O relaxamento da
quarentena é válido?
O isolamento proposto em países
como Coreia do Sul e Japão é altamente embasado em tecnologia.
Puderam associar os testes em larga escala da população com a
capacidade de rastreamento de pessoas e identificação de possíveis
disseminadores, levando ao isolamento deles. Isso é possível em um
país com um alto grau sociocultural e de educação, além de
capacidade de atingir a população com tecnologia que nós
infelizmente não temos no Brasil. Primeiro, temos mais de 220
milhões de habitantes, o que torna praticamente impossível o teste
massivo. Segundo, apesar de grande parcela da população ter
smartphone, isso demanda uma qualidade de banda larga e a adesão ao
uso de aplicativos específicos que no Brasil é extremamente
difícil. Terceiro, é impossível identificarmos no nosso País quem é
de alto risco ou não, haja vista a média de idade dos pacientes que
têm sido levados à UTI. Estima-se que uma grande parte dos idosos
convive com pessoas que são economicamente ativas e poderiam voltar
ao trabalho. Principalmente, estamos falando de uma população que
tem mais de 50% de obesos. É praticamente impossível isolar essas
pessoas das que vão sair do isolamento. Há um risco altíssimo de
ultrapassarmos a capacidade do sistema de saúde.
É possível implantar um
isolamento seletivo no Brasil?
Vejo uma dificuldade muito grande
de fazer um isolamento segmentado em um primeiro momento. Isso vai
ser possível quando tivermos uma curva descendente no número de
novos casos. É importante frisar que temos um cenário no setor
privado que é diferente do setor público, inclusive em relação ao
início do grande volume de casos. A Covid-19 foi trazida por um
segmento da população mais abastado, que podia viajar e trouxe a
doença. E depois ela foi passando para outras classes da sociedade.
Há uma dificuldade gigante para o isolamento segmentado dar certo
em um país que é formado por vários Brasis. Não somos uma nação
uniforme, somos compostos por diferenças marcantes.
Qual seria o prejuízo com a
mudança de orientação?
Não digo prejuízo, mas a mudança
traria um risco grande de o sistema de saúde do País não dar conta
do atendimento, principalmente de casos graves. Poderíamos ter uma
situação muito parecida do que aconteceu na Itália, na Espanha e em
cidades como Nova York.
O Hospital Albert Einstein
diagnosticou o primeiro caso da Covid-19 no Brasil em 25 de
fevereiro, e só no dia 5 de abril registrou a primeira morte. Neste
dia, dos 123 pacientes com sintomas da Covid-19, 66 estavam na UTI.
Como o hospital se preparou para ter uma resposta eficiente contra
a doença?
Esses 66 pacientes incluem a UTI e
a unidade semi-intensiva. Muitos estão em recuperação, mantidos em
uma monitoração mais próxima. Mas acho que o tratamento de
pacientes, especialmente os mais graves, acaba dependendo muito do
fator humano, de médicos capacitados para lidar com casos graves.
Durante o curso do tratamento, muitos doentes que vão necessitar o
respirador mecânico também podem requerer outros equipamentos e
expertises, como diálises. A máquina precisa estar à disposição. Um
dos nossos pacientes precisou de circulação extracorpórea, com um
equipamento extremamente sofisticado, de alta complexidade, em que
uma máquina faz a respiração e circulação do sangue fora do
paciente por incapacidade do pulmão — a ECMO (extracorporeal
membrane oxygenation). É uma máquina que não está presente em todas
as UTIs — nem do mundo, nem do nosso País. Esse paciente já voltou
para uma situação normal.
A preparação de UTIs é
fundamental?
À semelhança do que aconteceu nos
outros países, nas UTIs bem preparadas há uma chance de recuperação
maior. Daí a importância de não se sobrecarregar o sistema. No caso
do Einstein, a gente fala de um hospital do setor privado que se
preparou para um aumento gigante no número de pacientes de terapia
intensiva e que tem procurado ampliar a capacidade do SUS de
proceder da mesma forma no município de São Paulo. Porém, se nós
ultrapassarmos a capacidade de lidar com esses pacientes, faltarão
recursos pelo excesso de doentes. Inclusive de recursos humanos,
porque a gente não tem pessoas qualificadas no País para triplicar
ou quintuplicar o números de leitos de UTI. Precisamos de
intensivistas preparados para isso.
Vocês estão atuando com
protocolos experimentais que incluem a hidroxicloroquina?
Sim, na verdade o protocolo que nós
inauguramos há aproximadamente uma semana tem a liderança do nosso
setor de pesquisa, mas congrega até 100 UTIs do Brasil. Elas vão
incluir os seus casos de modo que a gente possa atingir um número
estatisticamente válido para obter uma resposta o mais rapidamente
possível. Nós coordenamos o trabalho, que envolve instituições como
o Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, e a BP — Beneficência
Portuguesa, em São Paulo. Inclui três frentes. Uma vai cotejar o
uso da hidroxicloroquina mais a azitromicina, em comparação só com
a hidroxicloroquina. Outra vai comparar o uso da hidroxicloroquina
versus nada, no paciente que não está em estado grave. E uma
terceira, nos casos gravíssimos, o uso da hidroxicloroquina frente
a outras formas de tratamento que não sejam com o uso da
hidroxicloroquina. A gente espera que em um mês haja o número
necessário para trazer alguma resposta ao sistema.
E os protocolos usando plasma
sanguíneo dos pacientes já recuperados?
Nós desenhamos um protocolo que se
baseia em um do Hospital Johns Hopkins. Existem outros que estão
avaliando o uso do plasma, também em Nova York, por exemplo. Temos
dois parceiros conosco, o Hospital das Clínicas e o Sírio-Libanês,
e este protocolo foi autorizado pela Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (Conep), o que permitiu darmos o início. Primeiro, é feita
a captação de doadores que já se curaram da Covid-19. É separado o
plasma do sangue doado, e depois é feita a infusão desse plasma,
que deve conter anticorpos. O objetivo é fazer os pacientes
adquirirem imunidade. Esse protocolo carece de uma conclusão com
base científica, porque muitas vezes o que está causando a
gravidade da pneumonia não é a infecção viral, mas a resposta
hiperimune. Nesse caso, quando você tem a imunidade muito
exacerbada, cria uma resposta inflamatória que pode ser tão ou mais
agressiva do que a própria infecção viral. Outros protocolos têm
sido feitos com imunomoduladores, com substâncias imunobiológicas,
para diminuir a atividade em cascata da inflamação. Muitas vezes a
agressão que a pneumonia da Covid-19 pode causar não é só por
infecção viral, mas sim pela resposta de inflamação.
O Hospital Albert Einstein fará
a gestão do hospital de campanha do Estádio do Pacaembu. Qual é a
prioridade da nova instalação?
Ele já começou a receber pacientes.
É para casos de baixa gravidade, que exigem internação para o
consumo de oxigênio e monitoração para sabermos se haverá uma
deterioração clínica do estado de saúde. Os doentes são
encaminhados para internação pelo médico que o avaliou nas unidades
básicas da Prefeitura de São Paulo. Isso libera as unidades de
maior complexidade municipais para se transformarem em hospitais
para os casos mais graves. No Pacaembu, são 210 leitos. Aqui no
Einstein temos 620 leitos, dos quais quase a metade está pronta
para se transformar em leitos de terapia intensiva.
A periferia das grandes cidades
será mais atingida pela pandemia? Quando isso acontecer, pode
ocorrer uma aceleração da curva de casos?
Essa aceleração nem começou. Para a
população menos abastada, ou na periferia, a epidemia não começou a
ter o incremento que a gente imagina que ocorrerá. Por isso essa
ampliação da rede pública, tanto nos hospitais de campanha como no
Hospital Municipal do M’Boi Mirim, é gerida por nós. Também fazemos
a gestão do Hospital Municipal Vila Santa Catarina e da Unidade de
Pronto Atendimento Campo Limpo, entre outros. No M’Boi Mirim está
sendo construída uma ampliação para baixa complexidade de 100
leitos, com a ajuda da Ambev e da Gerdau. Isso vai permitir ampliar
a sua capacidade. Com o atual confinamento, a gente não tem como
saber se o incremento vai ser tão grave. Ou se essa quarentena na
periferia está sendo feita da maneira adequada, para diminuir o
pico de casos. Os próximos dias vão dar a projeção do que está
acontecendo e permitir planejar o que fazer.
Qual sistema de saúde vai
surgir após a crise?
Grande parte do risco de
sustentabilidade do sistema estava apoiado na saúde como um
“business”, e não na prevenção. A gente tem uma pandemia que
penaliza o portador de doença crônica, o idoso, quem não se cuida
com relação ao tabagismo e ao controle de hipertensão e obesidade.
É um alerta muito grande de que essas questões precisam ser
cuidadas e não apenas terceirizadas para o setor da saúde. O
sistema de saúde do País carece de medidas preventivas e também de
preparação do ponto de vista humano. É necessário que saiam das
mãos dos médicos práticas que poderiam tranquilamente ser feitas
por outros profissionais. Isso permitirá o maior acesso da
população à saúde, principalmente com o uso de tecnologia.
A telemedicina veio para
ficar?
Há anos discutimos se a
telemedicina é vantajosa ou não. De repente, ela é uma das únicas
tecnologias que temos à mão para ampliar o acesso e levar consulta
especializada. Isso pode ampliar o serviço de saúde sem privilegiar
interesses corporativistas. O atendimento virtual tem se mostrado
muito eficaz — e não só para o coronavírus. Outro aspecto positivo
pós-pandemia é o colaborativo, entre profissionais, pesquisadores e
cientistas. Isso vai permitir dividir funções, inclusive com
startups e healthtechs. O próprio fato de os profissionais de saúde
serem tocados por uma situação que os torna incapazes de lidar com
a perda de vidas vai fazer a gente ter uma medicina mais
humana.
Vocês imaginavam que a pandemia
poderia adquirir essa dimensão?
Eu jamais imaginei que chegaria
dessa forma em nosso País. Se alguém disser que imaginava o que
estava para acontecer, está mentindo. Nenhum país imaginou que
chegaria a tal ponto. Se fosse assim, a Itália não teria sido
atingida dessa forma, os governantes não estariam tomando medidas
de mitigação. Nos preparamos para uma epidemia, mas não dessa
magnitude. Por outro lado, como vimos a evolução, nos envolvemos
para fazer com que o Einstein representasse um grande benefício
para a saúde do País.
Há voluntários trabalhando na
crise do coronavírus?
Quando lançamos uma proposta de
atuação voluntária para o nosso corpo clínico, tivemos 2 mil
médicos se prontificando a atuar com o setor público. A gente tem
orgulho de ver a entrega de todos diariamente, quando saímos tarde
da noite. Incluindo os que se contaminaram por conta da presença em
setores da saúde do SUS do Município e do Estado — que estão em
suas casas trabalhando, doentes. A capacidade de responder por um
bem maior e pelo benefício da sociedade ultrapassa o orgulho e
chega a emocionar. Isso ocorre inclusive com a participação de
pessoas do mundo empresarial, da comunidade judaica, que ofereceram
inclusive recursos materiais para que a gente pudesse fazer o
máximo e o melhor para a população, como um todo. Se a gente vencer
da forma que imagina, vai ter um senso de missão cumprida
gigante.
Quantos médicos pegaram a
doença?
Não temos os dados por médicos, mas
por colaboradores, incluindo enfermeiros, técnicos de enfermagem,
fisioterapeutas e médicos. Ao todo 350 foram afastados, 2% do
total. Metade atua na parte assistencial. Não conseguimos
estabelecer o vínculo exato onde ocorreu o contágio — na
comunidade, no hospital, etc. O profissional que atua com
Equipamento de Proteção Individual (EPI) fica até mais protegido do
que aqueles que estão na linha de frente da assistência. Criamos um
programa para lidar 24h com as angústias dos nossos colaboradores e
de suas famílias relacionadas ao trabalho durante a pandemia, para
dar conforto e prevenir situações de “burnout”, de estresse.
Fizemos uma parceria com um hotel para que profissionais que moram
longe ou não têm tempo para descansar saiam do seu turno para um
ambiente confortável.