Está na lembrança de todos, por mais
que se queira rotular o país como desmemoriado: a criação dos
planos de saúde teria se inspirado em duas premissas. A primeira
daria à classe média melhores serviços médico-hospitalares, além de
assistência não encontrada na Previdência. O segundo ponto estava
na convicção de que, afastando do INSS os que podiam viver sem ele,
os pobres teriam, como consequência, um acesso mais fácil aos
consultórios e às salas de cirurgia. Pois os dois tiros saíram
pelas culatras, e os serviços foram nivelados às avessas: os planos
não alcançaram a eficiência prometida, passaram a aplicar reajustes
na contramão dos índices inflacionários e esfolam os bolsos de
milhões de brasileiros. Enfim, os objetivos prometidos caíram num
monumental fracasso, porque os fugitivos da Previdência já não
conseguem honrar caríssimas prestações mensais; e os pobres estão
cada vez mais desassistidos.
Com toda certeza cabe ao brasileiro
traído indagar do governo, da Justiça, dos administradores desses
planos em que gavetas esconderam a liminar que mandava limitar os
reajustes a 5,72%, que, sem maiores explicações foi cassada por um
desembargador. Era só uma liminar, na dependência de avaliar o
mérito. O que significa que ficou aberto o caminho para o reajuste
de 10% aprovado pela ANS. Em matéria de agressão à economia
popular, essa constatação é mais que bastante para preocupar,
considerando-se que os planos de saúde envolvem questão
supersensível. Mexem com mais de 47 milhões de brasileiros, muitos
dos quais como chefes de família, onde há três ou quatro
dependentes.
São números dos planos, administrados
por quem pratica os reajustes que bem entendem. Cabe, antes de
tudo, às empresas que os contratam, como benefício aos empregados,
abrir negociações para cortar custos. Muitas vezes, o custo
pesa tanto que se torna critério para reduções nas folhas
salariais.
Portanto, mais de 9,2 milhões de
brasileiros (mesmo com as restrições de várias seguradoras, que
fecharam adesão a planos individuais há alguns anos) fazem enorme
sacrifício mensal para pagar um plano.
É um dado irretocável para prova que a
saúde pública no Brasil, se já era uma lástima, conta com mais um
ponto para se agravar: esse contingente de sofredores vai sofrer
reajuste de 10%. Ora, se o governo cuida mal da saúde pública,
devia, pelo menos, dar um mínimo de atenção à fixação de novos
valores, sob a evidência de abuso.
No caso presente é oportuno lembrar
que há uma agência reguladora específica. A Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS). Mas, como todas as agências reguladoras,
jamais exerce, na plenitude e com devida eficiência, a função de
regular o mercado, aplainando arestas entre agentes do mercado e,
principalmente, na proteção aos interesses dos consumidores. E
mais: a ANS nunca foi aparelhada para examinar, a fundo, se as
planilhas de custos apresentadas pelas operadoras e cooperativas de
saúde condizem com a realidade. Elas sempre alegam, até com alguma
razão, que a inflação da saúde cresce exponencialmente em todo o
mundo, e fica ainda mais onerosa quando a população envelhece. Mas
por isso mesmo é que há critérios mais claros e transparentes na
fixação dos reajustes, embora falte maior capacitação técnica da
parte da ANS para sancionar ou vetar os pedidos de reajuste.
Detalhe a considerar: a presidência da
ANS está sendo exercida, cumulativamente, por um dos diretores,
desde maio de 2017. Há mais de um ano, portanto. Outras
duas diretorias também estão vagas por muito tempo. Uma delas,
preenchida pela via de indicação política, de pessoa ligada às
operadoras.
A inflação oficial do IPCA, que mede
os gastos das famílias com renda até 40 salários mínimos, não
contempla a todos os módulos da sociedade nem a todos os segmentos
setoriais. A atual diretoria bem que tentou introduzir discussões
mais amplas sobre os reajustes e houve grande pressão dos planos de
saúde. A agência está desaparelhada, com diretoria incompleta, sem
o apoio das áreas técnicas do governo; e o Ministério da Fazenda,
de onde se exigia aval ao nível de reajuste proposto,
acompanhou o caso à distância, em meio a trocas nos quadros da
pasta, após a substituição de Henrique Meirelles pelo adjunto
Eduardo Guardia.
No fundo, o aumento de 10% proposto
pelas operadoras e acolhido pela ANS repete a mesma praxe dos
reajustes adotada para as passagens de ônibus. Os empresários do
setor apresentam planilhas genéricas; e os municípios,
desaparelhados e com funcionários sensíveis a aliciamentos,
sancionam os termos solicitados. Vale dizer que o Tribunal de
Contas da União criticou duramente o formato do cálculo e a falta
de transparência dos fatores de custo dos reajustes dos planos de
saúde.
No caso da ANS, o reajuste que vai
atingir os planos com aniversário a partir de maio, acumulado de
duas faturas, foi menor que os 13,55% de 2017 e os 13,57% de 2016.
Mas está muito, muito acima da inflação que gira abaixo de 3% ao
ano. Ou da inflação do segmento de serviços, que oscila de 5% a 6%
ao ano. A caixa preta dos planos de saúde precisa ganhar
transparência e consistência técnica. Não pode continuar
incompreensível, como eram as receitas médicas do passado, só
decifráveis por especialistas em hieróglifos.