Nesta quinta-feira (19/10) o
plenário do Supremo Tribunal Federal aprecia a ADI 5.595, onde se
debate a possibilidade de haver retrocesso na garantia de
financiamento mínimo das ações e serviços públicos de saúde, à luz
dos artigos 2º e 3º da Emenda 86/2015.
É a primeira vez que o assunto é
pautado no núcleo da agenda decisória do STF, muito embora seja
historicamente reconhecido e denunciado o subfinanciamento do nosso
Sistema Único de Saúde.
Se tivéssemos implementado, de fato,
os ditames da Constituição de 1988, desde sua redação originária, a
política pública de saúde contaria hoje com uma proporção estável e
mais equitativa do Orçamento da Seguridade Social (à luz do artigo
55 do ADCT). Isso equivaleria a mais do que dobrar o atual
orçamento do Ministério da Saúde. Tampouco podemos nos esquecer dos
desmandos havidos em relação à CPMF e à perenização, desde 1994, da
alegada medida “transitória e excepcional” de desvinculação de
receitas da União.
Nosso nível de gasto público em saúde
é tão iníquo e insuficiente — a despeito de haver falhas de gestão
que reclamam, sim, correção e controle — que corresponde a apenas
1/4 do nível de recursos destinados à assistência privada em saúde
no Brasil. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o SUS
conta com apenas cerca de 46% dos gastos totais em saúde no país
para atender a todos os 200 milhões de brasileiros, enquanto os
outros 54% são destinados a planos de saúde e gastos privados no
setor para cobrir cerca de 50 milhões de pessoas.
Ora, precisamos nos concentrar em
prevenir e promover a saúde, ao invés de priorizarmos tanto e quase
exclusivamente a sua recuperação em, por vezes, caríssimos
atendimentos referidos à assistência hospitalar e farmacêutica. Mas
para isso é necessário assegurar fonte estável e progressiva de
custeio, em prol da expansão da resolutividade da atenção básica em
saúde e da vigilância sanitária.
Se nós adotamos, há quase três
décadas, um modelo de saúde pública de acesso universal em nosso
pacto constitucional, certamente não foi para desconstruí-lo
paulatinamente, como se nos deixássemos capturar por uma rota de
fomento ao adoecimento para majorar o lucrativo mercado da
assistência hospitalar e farmacêutica.
É dessa opção constitucional que a ADI
5.595 se ocupa, quando a cautelar já concedida pelo ministro
Ricardo Lewandowski afirma a existência do dever de progressividade
no custeio do direito fundamental à saúde.
O Plenário do STF é chamado agora a
responder se a política pública de saúde reclama piso de gasto
governamental que lhe permita buscar, por exemplo, a ampliação da
cobertura vacinal e o acompanhamento permanente e pedagógico das
famílias. Ou se podemos aceitar como válidas medidas que burlam
contabilmente o dever de gasto governamental mínimo para nos
empurrar, de vez, para um modelo que histórica e estruturalmente
descuida do básico, para vender soluções ditas acessíveis na
expectativa de tratar ou remediar a doença já instalada.
O SUS se inspira na trajetória de
países como a Inglaterra, o Canadá e a França, onde o serviço
público prima pela busca de resolutividade da atenção básica em
cerca de 80% das demandas da população. Em tempos de tamanhas
desigualdade e crise fiscal, não é racional — em um país tão pobre
como o Brasil — caminharmos para um modelo como o norte-americano,
onde a fronteira do gasto privado parece não encontrar limites,
sobretudo ao se ocupar de medidas paliativas e recuperativas.
Piso de custeio, ao invés de porões falseados, é ponto de
partida para o aprimoramento da saúde pública em nosso país, sem a
qual o direito a viver dignamente tende a prosseguir perecendo na
porta dos hospitais, sejam eles estatais ou não.
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público
de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela
Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da
Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito
Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).