A crise deixou milhões sem
plano de saúde e derrubou a receita das operadoras. Isso faz
ressurgir uma velha proposta: criar planos baratos com cobertura
reduzida
Nos últimos dois anos, o desemprego ceifou os planos de saúde de
2,8 milhões de brasileiros que contavam com o benefício oferecido
pelas empresas. Os novos desassistidos encontram poucas
opções para garantir o atendimento da família. Uma delas é se
contentar com o Sistema Único de Saúde (SUS), marcado por grandes
dificuldades de acesso, mas também por núcleos de excelência com
qualidade superior à oferecida por muitos dos convênios
privados.
Quem busca algo além do SUS descobre que as operadoras perderam
o interesse em vender planos individuais ou familiares porque os
custos aumentaram e as margens de lucro diminuíram. Restam ao
consumidor os chamados planos coletivos por adesão. Para contratar
um desses produtos é preciso estar disposto a se associar a uma
entidade de classe e a aceitar riscos importantes, como reajustes
elevados e quebras unilaterais de contrato.
Diante da falta de produtos alternativos e da crise econômica
que reduziu o faturamento do setor, a proposta de lançamento de
planos de saúde básicos (também apelidados populares, acessíveis,
limitados) voltou a ser defendida pelas empresas. A ideia é lançar
modalidades mais baratas e com coberturas inferiores às exigidas
hoje pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Em março, o Ministério da Saúde anunciou o envio de três modelos
à ANS. Cabe à agência verificar a legalidade e a pertinência das
medidas sugeridas e decidir se as adotará ou não. As propostas
foram feitas por um grupo de trabalho criado pela Pasta.
Associações médicas, de defesa do consumidor e de outros segmentos
reclamam de falta de transparência. A própria autoria do projeto é
controversa. Apesar de ter lançado a ideia dos planos acessíveis e
coordenado o grupo de trabalho, o Ministério da Saúde afirmou, em
nota, que “não propôs e não opina sobre nenhuma das propostas
elaboradas”.
A necessidade de criação dos novos planos é defendida por Pedro
Ramos, diretor da Associação Brasileira de Planos de Saúde
(Abramge). Segundo ele, a demanda por esse tipo de produto não para
de crescer. Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do mercado de
saúde suplementar, o consumidor será iludido e não terá o
atendimento que imagina quando precisar dele. ÉPOCA reuniu os dois
na redação para um debate quente, marcado por bons argumentos,
ironias e algumas risadas.
ÉPOCA – O governo deve autorizar a criação de planos de
saúde básicos?
Pedro Ramos – Sim. Milhões de pessoas perderam seus
planos de saúde nos últimos anos. Temos uma demanda que não para de
crescer. Os planos acessíveis – ou básicos, vamos chamar assim –
que pretendemos oferecer são limitados em suas coberturas. Ninguém
aqui é infantil de dizer que não são. Não estamos tirando direitos
de ninguém. Estamos concedendo um direito aos que não têm nada.
Mário Scheffer – O governo não deveria
autorizar a criação desses planos. As operadoras têm uma pauta, de
longa data, de desregulamentação das coberturas e do reajuste dos
planos individuais. Essa proposta tem autoria exclusiva das
empresas. Não por acaso, a ideia tem sido rechaçada de forma
veemente por entidades como Ordem dos Advogados do Brasil [OAB],
Conselho Federal de Medicina [CFM] e Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor [Idec]. O ministro da Saúde, Ricardo Barros,
comporta-se como um consultor financeiro das empresas. A
justificativa para a criação desses planos surgiu da retração do
mercado.
ÉPOCA – Os mais de 2,8 milhões de brasileiros que
perderam seus convênios encontram poucas opções. As operadoras têm
condições de oferecer uma alternativa, sem que seja um engodo?
Ramos – Não é engodo. A ideia é oferecer três tipos
de plano. Um seria apenas de consultas e exames ambulatoriais.
Outro ofereceria o que está no rol de procedimentos da ANS, mas
apenas em determinada região. Outra grande oferta seria o plano
hospitalar puro. Será um dos melhores produtos para o Brasil. Quem
não quer pagar para ter apenas cobertura hospitalar? Há situações
em que o serviço público tem excelência e nós não temos. E
vice-versa. Vamos ter de baixar a guarda e unir os dois
sistemas [público e privado] porque ambos enfrentam
dificuldades. A saúde no Brasil está escangalhada.
Scheffer – Temos um sistema com uma complexa
relação entre o público e o privado. Cento e cinquenta milhões de
brasileiros têm direito ao SUS. E há outros 50 milhões que, além de
ter planos e seguros de saúde, também usam o SUS o tempo todo. Os
clientes da saúde suplementar usam o SUS na promoção de saúde, na
prevenção, na imunização, na alta complexidade [aids, câncer,
transplante, terapia renal]. E também usam o SUS nas restrições e
exclusões de cobertura que o mercado pratica. Um grande movimento
de pacientes e prestadores de serviços levou à conquista, em 1998,
da regulamentação que vigora até hoje. Ela é cheia de falhas, mas
estipulou padrões de cobertura e o rol de procedimentos. As
empresas querem derrubar o mínimo que foi conquistado.
ÉPOCA – Não é a primeira vez que essa proposta de plano
popular é feita. Ela é necessariamente ruim?
Scheffer – É muito ruim. É o plano “copo d’água e
aspirina”. As necessidades de saúde são imprevisíveis. As pessoas
não têm informações suficientes para saber se estão comprando um
produto de qualidade. Na hora do adoecimento, elas não terão o
atendimento que imaginam.
Ramos – Ruim para a população são as coisas
sem regulamentação. Estamos diante do fenômeno das clínicas
populares. Por R$ 80, a pessoa compra uma consulta, dois exames e
só. Isso é engodo. Fazemos 1,5 bilhão de atendimentos por ano. Em
2016, tivemos 25 mil reclamações. Gente, isso é zero. Não há
possibilidade, dentro da ordem econômica do país, de fazer tudo o
que as pessoas querem que a gente faça. A norma do plano acessível
tem de vir com um grande esclarecimento. O consumidor precisa
conhecer os limites do que estiver comprando.
Plano básico é copo d’água e aspirina. Quando
ficar doente, o cliente não terá o atendimento que imagina”
MÁRIO SCHEFFER
ÉPOCA – Planos que oferecem apenas consulta e exame já
existem. O que a proposta traz de diferente?
Ramos – A ideia é reduzir aquilo que foi acrescentado
aos planos que existem hoje. Foram colocando o rol de
procedimentos, acrescentando terapias e isso encareceu os produtos.
O que estamos discutindo aqui é valor de ingresso. As filas que
vemos nos hospitais públicos não são filas para cirurgia. As
pessoas precisam de uma consulta. É gente com dor de cabeça,
mal-estar. O grande trunfo é dar o diagnóstico precoce. Se o
paciente está diagnosticado e a obrigação cessa no serviço privado,
o serviço público tem de atuar.
Scheffer – Com isso, parece que o SUS vira um
resseguro do setor privado. Ele assumiria o que não é assumido pelo
setor privado. Há uma explosão de ações judiciais contra planos de
saúde no Brasil. No primeiro trimestre, o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo julgou, a cada dia, mais de 115 ações. Chegam
aos tribunais muitos problemas de produtos de preço baixo com rede
sem qualidade e restrições de médicos, hospitais e
laboratórios.
ÉPOCA – A criação desses novos planos pode acirrar
o fenômeno da judicialização?
Scheffer – Sim. É preciso lembrar que, em mais de 90%
dos casos, a decisão é favorável ao cliente.
Ramos – Empresa que não respeita o direito do
consumidor tem de ser punida. Um grande erro nosso é que o canal de
vendas é terceirizado. O vendedor mente. Nosso cliente já entra no
plano enganado.
ÉPOCA – Entidades médicas e de defesa do consumidor
afirmam que a proposta do Ministério da Saúde não foi
suficientemente debatida. Vocês participaram dessa discussão?
Ramos – Participamos de reuniões. Estavam lá algumas
entidades, mas não quero ficar criando polêmica com elas.
Scheffer – Não houve nenhuma transparência.
Quem participou do grupo de trabalho criado pelo Ministério da
Saúde, fora as operadoras, foi a público dizer que em momento algum
foram discutidas nas reuniões as propostas encaminhadas pelo
governo para análise da ANS. E outras entidades nem sequer foram
convidadas. No documento encaminhado à agência, o ministério afirma
que não tem responsabilidade sobre a proposta. É preciso discutir a
paternidade disso.
Os produtos terão coberturas limitadas, mas não
são engodo. Estamos concedendo um direito a quem não tem
nada”
PEDRO RAMOS
ÉPOCA – De quem é a paternidade?
Ramos – Eu, como representante da Abramge, não
apresentei nenhuma proposta. Fomos chamados a apoiar e apoiamos.
Não temos vergonha disso. Dizem que filho feio não tem pai. Isso
saiu do Ministério da Saúde, sim.
ÉPOCA – Quem fez a proposta ao Ministério da Saúde?
Ramos – Não fomos nós nem a Federação Nacional de
Saúde Suplementar [FenaSaúde].
Scheffer – E o Ministério da Saúde escreve
que a proposta também não é dele.
Ramos – Não vim aqui defender a paternidade
de nada. Vim defender ideias. Acho que a ideia é boa. Quem é pai ou
não é pai? O bebê está aí. A gente tem de cuidar.
Scheffer – Acho importante discutir o poder
financeiro desse setor, que movimenta mais de R$ 140 bilhões por
ano. Na eleição passada, identificamos R$ 54 milhões em doações a
candidatos. As operadoras elegeram 30 deputados federais, entre
eles o atual ministro Ricardo Barros. O retorno desse investimento
se dá na indicação de cargos estratégicos na ANS.
Ramos – Não conheço essa bancada que dizem
que temos no Congresso. Se as empresas fizeram esse apoio, fizeram
mal porque ele não está nos servindo. A ANS é cruel com a gente.
Ela é perversa. É a única agência que não fomenta o setor. Parece
que todo mundo é contra o plano acessível, mas também tem gente a
favor. Este governo e todos os outros nunca nos ajudaram. Se para
de vender carro, na semana seguinte vem um plano para ajudar a
indústria automobilística. Nunca nenhum governo deu dinheiro para
plano de saúde. No ano passado, quem mais ingressou em planos de
saúde foram os idosos. Os jovens saíram – o que é ruim. Como a
Previdência, é preciso ter jovens para sustentar os velhos. Não dá
para achar que tudo o que nosso setor propõe tem alguma armação.
Parece sempre que é o Batman e o Pinguim.
ÉPOCA – É possível melhorar a convivência entre a saúde
suplementar e o SUS para que ambos cumpram sua responsabilidade e
garantam o acesso da população à saúde?
Ramos – Precisamos disso. Se integrarmos essas
energias, vamos conseguir avanços com uma boa atenção básica. Ela
evitará que a gente gaste tanto e tão mal em saúde, mas as partes
não se entendem. Parece que tudo que sugerimos não presta. Agora
vem a ideia dos planos acessíveis. Se ninguém assumir a paternidade
dela, eu assumo. Eu, Pedro. Vou deixar o filho sem pai?
Scheffer – Pronto, já sabemos quem é o pai da
proposta. Pedro, você é o pai do bebê de
Rosemary (risos).
ÉPOCA – Há consenso entre vocês quanto ao fato de que a
saúde suplementar desempenha um papel importante?
Scheffer – O Brasil fez uma opção constitucional por
um sistema de saúde público, financiado por impostos e
contribuições sociais. A saúde suplementar é um subsetor que presta
atenção médico-hospitalar. Tem um papel relevante porque se ocupa
de um quarto da população, mas é preciso pensar o que se quer com o
sistema. Desmonta-se o SUS, que não terá sustentabilidade
financeira no cenário atual. Ao mesmo tempo, incentiva-se o
crescimento de um mercado de planos de baixo preço e cobertura
restrita. É o pior dos mundos.
Ramos – Ninguém, em sã consciência, é contra
o SUS. Sou um fã do SUS, mas ele padece de problemas como má gestão
e corrupção. O ideal seria que tivéssemos um SUS tão bom que não
houvesse espaço para nós. A união desses dois setores vai fazer com
que a saúde cresça. O SUS só vai ter fôlego quando o país voltar a
crescer. Isso gera espaço para que as pessoas busquem uma via
alternativa. Vamos nos empenhar para que os planos acessíveis
cheguem aos cidadãos.