Duas vezes por mês durante um ano, Lance Price, microbiólogo da
Universidade George Washington, pediu que seus pesquisadores
comprassem todas as marcas de frango, peru e carne de porco à venda
em cada um dos principais supermercados de Flagstaff, Arizona.
Enquanto os cientistas empurravam carrinhos de compras pelos
corredores com pedaços de carne amontoados, os clientes, curiosos,
perguntavam se eles estavam fazendo a dieta Atkins.
Na verdade, Price e sua equipe estão tentando responder a
questões preocupantes sobre a propagação dos germes resistentes a
antibióticos em pessoas a partir de animais criados em fazendas
industriais. Mais especificamente, eles estão tentando descobrir a
quantidade de pessoas que têm contraído infecção urinária ao
ingerirem carne comprada em supermercado em uma cidade
norte-americana.
Price descreve a si próprio como uma espécie de colecionador.
Seu próprio congelador está repleto de uma mistura de amostras dos
seios paranasais e ouvidos internos, tendo armazenado até mesmo a
água de um narguilé. Entretanto, as milhares de embalagens de caldo
de carne coletadas em Flagstaff, onde seu instituto de pesquisa sem
fins lucrativos está situado, estão todas embaladas ordenadamente
em congeladores localizados lá, marcados com códigos de barras para
fins de identificação.
Ele agora está investindo o poder do sequenciamento genético em
uma tentativa ambiciosa de encontrar correspondências precisas
entre os germes da carne e os de mulheres que sofrem de infecção
urinária. Recentemente, apoiado nas mãos e nos joelhos em sua sala
na Universidade de Washington, ele estudava a árvore genealógica de
germes de algumas das amostras de carne, uma brochura de mais de 25
páginas que desfraldava como um rolo de papel toalha. As linhas e
números nelas impressos mostravam os primeiros indícios que
poderiam ajudar a responder a questão central investigada por
Price: quantas mulheres de Flagstaff contraíram infecção urinária
ao ingerirem carne comprada em um supermercado? Ele espera obter
respostas preliminares neste trimestre.
Alerta
Pesquisadores têm nos alertado há anos a respeito dos
antibióticos – remédios milagrosos que mudaram o curso da saúde
humana no século 20 – estarem perdendo poder. Alguns advertem que
se essa tendência não for interrompida, podemos voltar às condições
que vivíamos antes dos antibióticos, quando as pessoas morriam de
infecções comuns e as crianças não sobreviviam a infecções na
garganta. Atualmente, as bactérias resistentes aos medicamentos
causam cerca de 100 mil mortes por ano, mas principalmente entre
pacientes com sistema imunitário enfraquecido, crianças e
idosos.
Há um amplo consenso quanto ao uso excessivo de antibióticos ter
causado uma crescente resistência aos medicamentos. Muitos
cientistas dizem existir evidências de que o uso intensivo de
antibióticos para promover o crescimento mais rápido em animais
criados em fazenda é um dos grandes culpados por isso, criando um
reservatório de bacilos resistentes aos medicamentos que estão
chegando até as comunidades. Mais de 70% de todos os antibióticos
usados nos Estados Unidos são dados para animais.
Grupos do agronegócio discordam e dizem que o principal problema
é o uso excessivo de tratamentos com antibióticos em pessoas. Os
bacilos raramente migram dos animais para as pessoas, e mesmo
quando o fazem, o risco que representam para a saúde humana é
desprezível, argumenta a indústria.
Os cientistas dizem que o sequenciamento genético trará maior
segurança para esse debate. Eles terão como rastrear os germes
presentes nas pessoas até as suas origens, esteja ela em um animal
de fazenda ou em outros pacientes hospitalizados. A deputada
democrata Louise Slaughter, de Nova York, que defendeu uma
legislação para controlar o uso de antibióticos em fazendas, disse
que tal prova resolveria o problema.
Price tem buscado quantificar até que ponto os bacilos
resistentes aos medicamentos presentes nos animais estão infectando
as pessoas. Ele tem tentando fazer isso por meio da análise da
composição genética completa de germes coletados na carne vendida
em supermercados e em moradores de Flagstaff no ano passado. A
queda nos custos do sequenciamento genômico tornou a sua pesquisa
possível.
Ele está comparando as sequências genéticas de bactérias E. coli
resistentes a múltiplos antibióticos encontradas nas amostras de
carne com as que têm causado infecções do trato urinário em
pessoas, principalmente mulheres.
Infecção
A infecção urinária foi escolhida por ser bastante comum. Há
mais de 8 milhões de casos da doença entre as mulheres americanas
por ano. Em casos raros, as infecções entram na corrente sanguínea
e são fatais.
Acredita-se que as bactérias resistentes presentes na carne
causam apenas uma parte de tais infecções, mas mesmo essa fração
seria responsável por infectar várias centenas de milhares de
pessoas anualmente. O germe da E. coli que Price escolheu pode ser
fatal, e se tornar ainda mais perigoso por sua tendência a resistir
a antibióticos.
A infecção ocorre quando a carne que contém o germe é comida,
vindo a crescer no intestino e, em seguida, sendo introduzida no
interior da uretra. Price disse que o germe pode causar infecções
de outras maneiras, como, por exemplo, através de um machucado,
enquanto a pessoa corta a carne crua. As bactérias são promíscuas,
de modo que quando entram nas pessoas, podem sofrer mutações e
viajar mais facilmente entre elas. A nova estirpe da bactéria
resistente a antibióticos MRSA, por exemplo, foi detectada pela
primeira vez em pessoas na Holanda em 2003, e hoje representa 40%
das infecções por MRSA em humanos no país, de acordo com o
pesquisador holandês Jan Kluytmans. Essa mesma cepa era comum em
porcos criados em fazendas antes de ter sido encontrada em pessoas,
dizem cientistas.
Price, de 44 anos, começou sua carreira fazendo testes de
resistência do antraz ao antibiótico ciprofloxacina (Cipro) para
fins de pesquisa em biodefesa na década de 1990. Seu interesse pela
saúde pública o levou a trabalhar com a resistência aos
antibióticos no início de 2000. Ela parecia uma ameaça menos
teórica.
Antibióticos de primeira linha já não estavam mais curando
infecções básicas, e os médicos estavam preocupados. "Pensei,
'Nossa, é claro que isso é uma loucura, eu tenho que fazer alguma
coisa a respeito'", disse ele. Ele desenvolveu sua pesquisa sobre
antibióticos em uma organização sem fins lucrativos fundada em
2002, o Instituto de Pesquisa de Genômica Translacional de Phoenix.
Seu laboratório em Flagstaff, uma filial, é financiado
principalmente por fontes federais, incluindo os Institutos
Nacionais de Saúde e a Secretaria de Defesa.
Governo
Price, especializado em epidemiologia e microbiologia, tem
divulgado alertas sobre a resistência aos antibióticos há alguns
anos. Ele declarou recentemente a uma comissão do Congresso que as
evidências dos efeitos nocivos de antibióticos na agricultura são
impressionantes.
Ele acredita que os esforços da Administração de Alimentos e
Medicamentos (FDA) para limitar o uso de antibióticos nas fazendas
têm sido fracos. Em 1977, a FDA disse que iria começar a proibir
alguns dos usos agrícolas de antibióticos. Porém, comitês de
dotações da Câmara e do Senado – dominados por interesses agrícolas
– aprovaram resoluções contra a proibição, e a agência recuou. Mais
recentemente, o organismo limitou a utilização de duas classes
importantes de antibióticos em animais. Todavia, os defensores
dizem que ela precisa ir mais longe e proibir o uso de todos os
antibióticos promotores do crescimento. Isso já foi feito na Suécia
e na Dinamarca.
Slaughter disse que o lobby agressivo dos interesses do
agronegócio tem desempenhado um papel importante no que diz
respeito a impedir a aprovação de leis. De acordo com a sua equipe,
dos 225 relatórios de lobby arquivados durante o último Congresso
um projeto de lei que ela redigiu sobre o uso de antibióticos,
aproximadamente 9 em cada 10 foram apresentados por organizações
que se opõem à legislação.
No entanto, a economia dos alimentos representa talvez o maior
obstáculo. Em grandes fazendas industriais, os animais são criados
bem perto uns dos outros, com grandes concentrações de fezes
carregadas de bactérias e urina. Os antibióticos freiam as
infecções, mas também criam resistência aos medicamentos. Essas
mesmas fazendas produzem grandes volumes de carne barata que os
americanos se acostumaram a consumir.
Os governos começaram a reconhecer esses perigos. Os Estados
Unidos prometeram recentemente destinar 40 milhões de dólares a uma
grande empresa farmacêutica, a GlaxoSmithKline, para que ajudasse a
desenvolver medicamentos para combater a resistência aos
antibióticos. Porém, Price diz que a elaboração de novas drogas é
apenas uma solução parcial.
"Muitas pessoas dizem: 'vamos inovar para sair dessa'", disse ele.
"Mas se não modificarmos a forma como abusamos dos antibióticos,
estaremos apenas adiando o inevitável".