Empresas já começam a atrasar ou a pagar só uma parte dos boletos dos planos de saúde, e a saída das operadoras tem sido a negociação caso a caso para evitar o cancelamento do contratos durante a pandemia.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o economista Marcos Novais, superintendente executivo da Abramge, diz que garantir a permanência dos inadimplentes até o fim de junho seria insustentável para o setor.
“Vamos sair arrasados dessa crise. Milhões de CNPJs vão morrer. Um salvo-conduto para todos deixarem de pagar é o pior dos mundos. A gente não vai durar nada. No individual, a gente está dando conta de negociar”, afirma. A Abramge reúne 136 operadoras de saúde, com 150 hospitais pelo país.
As operadoras estão sendo criticadas pelo fato de não terem assinado acordo com a ANS em que se comprometeriam a não cancelar contratos de inadimplentes em troca de acessar uma reserva de recursos.
Para ele, o setor continuará sangrando mesmo no pós-crise do coronavírus, porque muitas das empresas contratantes vão fechar, ou enfraquecer muito, e, ao mesmo tempo, haverá muitas cirurgias eletivas canceladas agora que serão feitas mais adiante.
“É provável que eu tenho menos recursos entrando no caixa das operadoras e mais saindo. Vai ser um desafio sem precedentes. O pós-crise será tão grande quanto a crise.”
Os planos não aceitaram firmar acordo com a ANS que garantiria manutenção dos inadimplentes até junho. Por quê?
Não estamos blindados nessa crise, corremos riscos tanto quanto qualquer outro setor da economia. Essa informação de o setor está bem, de que foram liberados R$ 15 bilhões [que seriam liberados para o setor] não existiu. A proposta da ANS era liberar R$ 1,4 bilhão para todo o mercado, 695 operadoras.
A fatia de cada uma levaria em conta o volume de provisão. Nove operadoras, com maior margem de solvência, teriam direito a R$ 2,7 bilhões. E tinha R$ 10 bilhões que a ANS deu a livre movimentação entre aplicações financeiras. Ou seja, eu poderia tirar de uma aplicação e levar para outra, mas não posso usar esse recurso.
Mas com a divulgação de que estavam sendo liberados R$ 15 bilhões, vieram várias de assembleias legislativas dizendo que os planos não precisariam suspender contratos inadimplentes ou cobrar a fatura cheia do boleto.
São propostas que nos colocam numa posição de extremo risco. A gente tem explicado que não dá para aplicar essas medidas para todos ao mesmo tempo.
O nosso consumo de caixa é muito rápido, a despesa é muito cara. São R$ 180 bilhões de pagamentos de despesas assistenciais por ano.
Qual é a proposta para lidar com os inadimplentes?
As operadoras estão negociando contrato a contrato, o que é possível. Tem empresas que estão pagando 10% do valor do boleto. É de R$ 100 mil e ela paga R$ 10 mil. Vamos cancelar? Não, tem um monte de pessoas ali que dependem do plano. Se a gente fosse seguir à risca, a gente sairia da crise muito menor do que entrou. É natural que vamos ter problemas. Vamos sair arrasados dessa crise. Milhões de CNPJs vão morrer. Um salvo-conduto para todos deixarem de pagar é o pior dos mundos. A gente não vai durar nada. No individual, a gente está dando conta de negociar.
E se não foi possível a negociação?
Não vai fazer porque senão será insolvente depois. Se eu pegar R$ 20 milhões de beneficiários e falar: ‘não precisa mais pagar o seu plano de saúde que ninguém pode ser cancelado até o final da pandemia’. OK, mas 47 milhões vão ficar sem assistência porque vai quebrar tudo.
Não tem blindagem. No individual, as operadoras estão negociando o máximo possível. Tem gente postergando o pagamento para dois meses à frente, recomendamos para as operadoras que não aplicar reajustes por faixa etária ou anuais por três meses.
Tem cliente que não adianta suspender o pagamento e cobrar daqui a quatro, cinco meses. Ele está passando por uma dificuldade grande e ela será ainda maior. A economia estará arrasada. Então a operadora está propondo a troca de produto [plano com cobertura inferior, por exemplo].
Os hospitais privados também contam com ajuda dos planos para atravessar a crise. Acordos estão sendo feitos?
Sim, da mesma forma, a orientação é para que os nossos associados busquem junto aos hospitais algum tipo de negociação com aqueles que estão mais afetados financeiramente durante essa crise. Mas isso dentro das possibilidades de cada um. Porque talvez haja operadoras passando por tantas dificuldades quanto os hospitais. São 3.000 hospitais vinculados a operadoras. Não dá para ter uma medida única.
As pessoas normalmente deixam de pagar o plano em última circunstância. Será que haveria uma inadimplência tão grande assim?
Em fevereiro havia uma opinião unânime de que a inadimplência não seria um grande problema porque, historicamente, isso nunca aconteceu.
As preocupações eram outras. Eram a falta equipamento de proteção para funcionários, o receio de não ter testes diagnósticos para todos. Agora a conversa é outra. A inadimplência é o maior problema. Por quê?
Quando as pessoas não têm dinheiro, não há o que priorizar. Ainda estamos levantando os números, mas ainda não tenho.
Inadimplência são 60 dias sem pagar. Eu só vou ter daqui a 45 dias. E o balanço público só vou ter em setembro, quando sai o balanço de julho. Aí vamos mostrar todo o arraso que foi.
Qual setor empresarial está situação está pior?
Está generalizado. Empresas de médio porte, com 100 beneficiários, 50, empresas com 10 mil beneficiários, 5.000. Empresas de transporte, serviços, usinas. É mais fácil elencar quem não está enfrentando muitas dificuldades, talvez supermercados e indústria de alimentos, que o que está funcionando. O resto está fechado, e fechado não tem recurso.
Os planos economizaram com a crise, por exemplo, com procedimentos eletivos que não foram feitos. Qual foi a redução de custos?
Essa redução de despesas não aconteceu para nós, operadoras. Estamos desde fevereiro investindo.
Tem operadora abrindo hospitais e ambulatórios de campanha, outras que anteciparam a abertura de hospitais, abrindo leitos clínicos e de UTIs, houve contratação de profissionais de saúde, compra e distribuição de equipamentos de proteção individual. A despesa só cresceu.
Os hospitais alegam uma queda de 90% da ocupação, muito em razão do cancelamento das cirurgias eletivas. Ou seja, se não aconteceram, os planos não pagaram…
Sim, nessa vertente houve redução de despesa. Aquelas que puderam ser adiadas, foram. Mas, independentemente disso, a despesa aconteceu para melhorar a capacidade para gente não entrar em colapso.
A maior vitória desse setor será não entrar em colapso. Por isso que as operadoras investiram muito.
Alguma estimativa de quanto foi investido?
Ainda não mensuramos isso. O movimento agora ainda é identificar se está faltando equipamento de proteção e fazer todo esse atendimento. No pós-crise vamos ter isso.
A ideia é separar esse investimento no balanço para que a gente no futuro tenha isso. Se acontecer de novo, eu consigo calcular melhor.
Os hospitais da rede privada vão ceder leitos para o sistema público?
Estamos sendo consultados no país todo para ver se temos leitos de UTI para o setor público. O governo paulista já pediu isso e já existem operadoras no interior, como em Campinas, e, em São Paulo, que já colocaram leitos à disposição do setor público.
É um momento único, é a primeira vez que a gente está atuando com um sistema de saúde único de fato.
Quais os maiores desafios daqui para frente?
Daqui alguns meses a gente vai chegar ao tal do platô [da transmissão] e aí começar a descer montanha, mas a gente não vai descer. A gente terá muitas cirurgias eletivas a serem feitas, o custo disso será caro no momento em que a economia está totalmente devastada. Muitas empresas não vão sobreviver.
Então é uma preocupação muito grande esse pós-crise. Será outra guerra. Vamos ter problemas tanto do lado do contratante, já que muitas empresas não vão sobreviver, ou vão sobreviver muito debilitadas.
E, do lado dos hospitais, muitos procedimentos sendo feitos. Então, é provável que eu tenha menos recursos entrando no caixa das operadoras e mais saindo. Vai ser um desafio sem precedentes. O pós-crise será tão grande quanto a crise, infelizmente.