São Paulo – “Veja os exemplos dos
nossos perfis de compra nas farmácias. Não há proteção para que
elas vendam nossas informações, dos nossos documentos, para
seguradoras. O Brasil não tem legislação para regular esse tipo de
situação e isso é muito sério”, disse o advogado especialista em
privacidade e vigilância Dennys Marcelo Antonialli sobre a coleta
do CPF em compras nas farmácias. Ele teme que os estabelecimentos
possam produzir relatórios sobre os remédios que o cidadão compra
e, com essa informação, as seguradoras possam alterar o preço
cobrado nos planos de saúde.
Antonialli participou hoje (22) do
debate USP Talks, promovido pela universidade paulista, com o tema
“Privacidade na Era da Internet”. Ao lado do advogado, a professora
especialista em comunicação e jornalismo digital Elizabeth Nicolau
Saad Corrêa.
“Tudo vira informação, vira 0 e 1”,
disse a professora em relação ao código binário, padrão de
informações na internet. “O único jeito de não abrir porta nenhuma
é ficar na caverna. Não corresponde ao momento de sociabilidade que
vivemos. O que precisamos é ser prudentes e cautelosos”,
completou.
Para o advogado, existe uma grande
necessidade de regulamentação na internet em assuntos relacionados
ao uso de dados pessoais. “Quando falamos de direito à privacidade,
estamos pensando na proteção dos dados. O que o direito propõe é
controlar ou empoderar o usuário sobre os usos feitos com esses
dados. Limites colocados. Alguns dados são muito sensíveis e não
devem ser coletados, como posicionamento político ou orientação
sexual. Podemos pensar que isso pode criar discriminação, o que
deve ser proibido”, argumenta.
Como exemplo, Antonialli descreveu um
caso que aconteceu nos Estados Unidos. “Uma farmácia chamada Target
desenvolveu um programa de marketing direcionado para futuras mães.
Para isso, utilizaram um sistema elaborado para descobrir quais
mulheres estavam grávidas. Usaram um algorítimo que determinava a
probabilidade não porque a pessoa comprou um teste de gravidez, mas
por outros hábitos como shampoos. Então, o pai recebeu uma
propaganda em casa de produtos para grávidas direcionada a sua
filha de 16 anos. Ele ficou ofendido, porque ela não estava
grávida. O fato é que ela estava e a farmácia descobriu isso antes
do pai.”
Por meio da "problematização" desse
caso, o advogado acrescentou que existem diferenças entre culturas
e suas relações com a privacidade. “O direito tem que pensar nesses
limites. Existem variadas diferenças nos níveis de proteção com
base em como cada cultura enxerga isso. Por exemplo, quando o
Google Street View foi lançado no Japão, encontraram uma grande
resistência. Para os japoneses, a calçada é parte privada da
residência e é vergonha se ela estiver feia. É uma noção diferente
da do Brasil, aonde as pessoas querem estar na porta de casa quando
o carro da Google for passar.”
De acordo com essa noção particular de
privacidade, diferentes países já regulam os meios digitais, ou
estão em meio a um processo tal. “Na Europa, existe a visão do
valor social da privacidade. Eles não querem uma sociedade aonde
pessoas possam abdicar de sua privacidade. Eles enxergam isso para
que as pessoas não estejam reféns da publicidade. A exposição de
usuários preocupa algumas sociedades e a regulamentação está
surgindo cada vez mais forte”, disse o advogado.
O caso dos Estados Unidos é diferente.
Um dos pioneiros na regulamentação, a forma deles passa por
turbulências, como foi o caso da Cambridge Analytica, que usou
dados de usuários do Facebook para direcionar campanhas
eleitorais.
“Lá, a privacidade está relacionada
com consentimento. Se eu confio na plataforma, então tudo bem. Eu,
como indivíduo, escolhi participar dessa atividade. Esse modelo é
criticado porque até que ponto uma pessoa pode dizer não para o
Facebook? Nos Estados Unidos, a regulamentação foi no sentido de
que as empresas são obrigadas a avisar o que elas fazem. Essa
exigência de transparência criou políticas de privacidade. Isso tem
mudado, porque sabemos que não é uma negociação. Ou as pessoas
aceitam ou não estarão nas plataformas. Também os termos são longos
e mudam a todo momento”, acrescemtpi;
Vigilância
Para Elizabeth, cabe ao usuário estar
atento para se prevenir das armadilhas da exposição digital. “Você
precisa dar o mínimo de dados para ser identificado em um ambiente.
Com isso, esquecemos de algo no caminho que é ler os termos de uso.
São enormes e não temos paciência. Mas ali estão as condições do
teu relacionamento com a plataforma. Não temos tempo, então
aceitamos”, disse.
“Depois disso, é possível, em cada um
dos ambientes, entrar nos itens de configurações. Ali podemos
determinar o que aparece, com quem conversamos, se os posts são
públicos ou para algumas pessoas que você escolhe. Se permite
comentários ou não. Mas quando você só aceita, usando o exemplo do
Facebook, você deixa em aberto todas as opções. Sim para tudo.”
A professora lembrou aos presentes que
as plataformas digitais vivem de vender dados. “Você alimenta um
processo de dados em que podem vender, comercializar para
anunciantes, pessoas que querem atingir determinados públicos.
Assim essas áreas gratuitas fazem dinheiro. Então, cabe a nós
decidirmos o quanto queremos alimentar esse processo de
sobrevivência das plataformas (…) É muito difícil não usarmos a
tecnologia, mas precisamos ter consciência. Porque tudo que cai
ali, se faz qualquer coisa. Quem trabalha com dados sabe que é
possível fazer todo tipo de correlação.”
Foi o que aconteceu no caso da
Cambridge Analytica, explica Antonialli. “A empresa desenvolveu uma
dessas enquetes e teve acesso aos dados de mais de 50 milhões de
usuários. Fizeram essas inferências a respeito dos perfis
psicológicos dessas pessoas. Descobriram que as pessoas poderiam
ser classificadas em categorias e para cada uma um tipo de mensagem
mais persuasivo. Do ponto de vista ético, há uma série de
preocupações. Mas se houve crime, não. O que existe ali é em que
medida a plataforma não deveria ter impedido esses usos”,
finalizou.