Ernesto Tzirulnik, Doutor em Direito Econômico pela USP. Advogado.
Coordenou a elaboração dos anteprojetos de Lei de Contrato de
Seguro (PL 3.555/2004 a PLC 29/2017) e Preside o Instituto
Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS)
A
Superintendência de Seguros Privados (Susep) está em vias de
mudança. Alguns lamentam. Outros esperançamos. O
ministro Paulo Guedes havia confiado a autarquia fiscalizadora das
operações de seguro, e com ela o órgão normatizador da política de
seguros (o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP), à Sra.
Solange Vieira. Ela e sua equipe cujos integrantes publicamente
confessam “não ser da área”, com a adesão dos prosélitos do
ultraliberalismo, e também dos decepcionados com as falcatruas
normativas do passado, promoveram uma verdadeira revolução
normativa no setor.
Revolução porque princípios e praxes foram atropelados, contra a
ordem legal, com a imposição de pretensa nova ordem que, bem
examinada, acabou com os direitos dos segurados e beneficiários,
tornou inseguras as operações das seguradoras e dos corretores de
seguro, e privilegiou o setor de resseguros, onde domina um
oligopólio internacional.
Primeiro, em companhia do BB Seguridade e da Federação das
Resseguradoras, a Susep de Solange Vieira cuidou de evitar a
votação do PLC 29/2017, que acabara de receber parecer favorável do
atual presidente do Senado. Afinal, uma Lei de Contrato de Seguro
maturada no Congresso Nacional limitaria o poder da autarquia e o
exagerado conforto operacional das resseguradoras. Ficaria mais
difícil “passar a boiada” se houvesse lei colocando ordem na casa.
Daí tudo começou.
A
Resolução 382/2020 tratou de tema importante, mas, curiosamente,
esqueceu de falar sobre as despesas comerciais do resseguro que
envolvem faturamentos astronômicos. Essa resolução foi a causa
original da queda da superintendente porque atentou contra
poderosos interesses comerciais.
A
inconstitucional Resolução 380/2020 criou o resseguro direto (sem
seguro) para as entidades abertas e fechadas de previdência
complementar e operadoras de planos privados de assistência à
saúde. As Circulares 621 e 642 e a Resolução 407/2021 empurraram
pelo ralo o regime jurídico dos contratos de seguro, as conquistas
jurisprudenciais e aquelas obtidas nos usos e costumes estáveis do
mercado. Para dar poucos exemplos, a circular 621 tenta sepultar a
jurisprudência pacífica e sumulada de que a suspensão das
coberturas de seguro depende de prévia notificação do interessado
para o pagamento do prêmio em atraso. O artigo 34, no parágrafo
único permite que esse assunto seja regulado pelas apólices. Ora,
todo mundo sabe que as apólices são escritas exclusivamente pelas
seguradoras e tenderão a puxar-lhes a sardinha.
Além
disso, a circular 642, no artigo 4º enterra a praxe de mercado,
segundo a qual os seguros consideram-se perfeitos e acabados quando
tendo recebido a proposta as seguradoras não hajam apresentado
recusa expressa. O parágrafo 2º desse artigo 4º diz que as
condições contratuais poderão prever a formação pelo silêncio. Ora,
que seguradora usará condições prevendo isso se pode optar por
vincular-se apenas em caso de aceitação expressa?
Embora alguns tenham dificuldade
para enxergar, todas as normas vêm em detrimento dos consumidores e
demais contratantes de seguro.
No
que toca aos seguros de grandes riscos, para piorar, a Susep
“decreta” que não são contratos por adesão, como se fosse possível
para segurados e seguradoras livrarem-se dos clausulados exigidos
pelos resseguradores e que, muitas vezes, reproduzem regras
internacionais. Basta lembrar aqui as chamadas LEGs dos seguros de
riscos de engenharia, que são as normas produzidas a pedido das
resseguradoras pelo London Engineering Group.
Mas,
a motivação ideológica vai além e mais uma vez pretende que os
seguros, os mais consensuais dos contratos empresariais, passem a
ser contratos formais e dependam da aceitação expressa. Ler o
artigo 4º dessa resolução é desaprender tudo o que o Direito
Privado forjou ao longo de muitos séculos. No delírio do
“guedismo”: contratos paritários, entre iguais, frutos da mais pura
expressão da liberdade!
A
Susep colocou a sua concepção de liberdade acima de tudo, de todos
e dos fatos. Oxalá a nova gestão saiba restaurar o mínimo respeito
à lei e evitar que os partidos políticos e as entidades
representativas de classes tenham de propor um sem número de ações
de inconstitucionalidade para acabar com a farra normativa dos dois
últimos anos.