Líder no Norte e
Nordeste, Hapvida pressiona médicos a prescreverem
hidroxicloroquina (crédito: B3)
A Organização Mundial de Saúde
(OMS) suspendeu os testes com a hidroxicloroquina em pacientes com
a Covid-19. Estudos vêm apontando ineficácia, riscos colaterais e
aumento dos casos de morte. Mas nada disso impediu que o Ministério
da Saúde – com ministro interino há 13 dias – publicasse um
protocolo, com intenções mais políticas do que sanitárias, com
orientações para o uso da droga em casos leves. Também não impediu
que a maior operadora de saúde do Brasil, a Hapvida, seguisse
receitando e doando a medicação para uso em casa.
Para piorar, médicos da empresa
denunciam que estão sendo pressionados a prescrever o remédio.
Segundo profissionais ouvidos pela reportagem, a comunicação da
chefia, via WhatsApp, começou amena, mas foi ganhando tons de
pressão pela necessidade de seguir o protocolo da Hapvida, que
indica a medicação no início dos sintomas.
O caso da Hapvida, que é líder no
Norte e Nordeste, se soma a médicos com patrocínio político da
deputada bolsonarista Clarissa Tércio (PSC) e grupos empresariais
que vêm promovendo a hidroxicloroquina. Eles se intitulam “Doutores
da verdade” e prescrevem e doam a droga em comunidades da periferia
do Recife, como mostramos aqui, há algumas semanas.
Após o alerta dos riscos da
medicação no combate ao novo coronavírus dado pela OMS, a
Prefeitura do Recife e o Governo de Pernambuco informaram, no
início da semana, que retiraram o remédio de seus protocolos.
A Marco Zero
Conteúdo teve acesso a algumas dessas mensagens de
WhatsApp. Nelas, está dito que não se pode deixar de seguir o
protocolo institucional e profissionais que não estiverem
receitando o remédio, que faz parte de um kit de medicações, terão
que explicar pessoalmente as razões.
A comunicação pede ainda que os
médicos parem de falar sobre os riscos da hidroxicloroquina, uma
vez que os pacientes que estão indo para casa com o kit estão tendo
melhoras e não estão retornando às unidades com agravamento de
quadros. Uma matéria publicada nesta quinta-feira (28) pela Folha
de São Paulo relata que já houve demissão na Hapvida.
Acontece que o protocolo de manejo
de pacientes com a Covid-19, da Hapvida, ao qual a reportagem
também teve acesso, cita um artigo de evidências in vitro e o outro
que é de um estudo clínico não randomizado, sem critério de
inclusão e já amplamente refutado. Isso sem contar que a própria
Hapvida cita como referência um artigo que mostra as complicações
cardíacas resultantes do uso da hidroxicloroquina.
A denúncia contra a Hapvida chegou
ao Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), inclusive com
temor de retaliações, por isso o anonimato dos denunciantes. Em
nota, a entidade informou que “a posição do sindicato é o respeito
à autonomia do médico e do paciente, já afirmada em nota pública” e
informou que enviou a denúncia ao Conselho Regional de Medicina de
Pernambuco (Cremepe).
Consultado, o Cremepe se restringiu
a reforçar que “o tratamento do paciente é autonomia do médico,
seguindo o que foi estabelecido pelo CFM (Conselho Federal de
Medicina)”.
Nos pacientes sem indicação para
internação, a recomendação é o isolamento domiciliar por 14 dias, o
oferecimento dos serviços de teleatendimento para orientações e
retirada de dúvidas, e a prescrição da ivermectina, do prednisona e
da hidroxicloroquina, de acordo com a idade e a presença de
comorbidades. Tudo isso mediante a assinatura de um termo de
consentimento do paciente.
O documento, cuja última
atualização é de 22 de maio, reconhece que não há tratamento
recomendando para a Covid-19, mas, ainda assim, insiste em manter a
hidroxicloroquina no protocolo da operadora. Está lá escrito:
“Apesar de não haver nenhum tratamento recomendado atualmente para
o combate à infecção pelo novo coronavírus, alguns estudos em seres
humanos sugerem benefício com o uso da hidroxicloroquina em
pacientes infectados, devido ao seu efeito imunomodulador e de
redução da replicação viral, devendo ser usado, portanto,
preferencialmente nos primeiros dias de sintomas”.
O documento da Hapvida fala também
da possibilidade de associação ao antibiótico azitromicina: “O seu
uso pode ser potencializado em associação ao azitromicina em
pacientes que possam ser monitorizados (em internação
hospitalar)”.
No entanto, um estudo feito pela
Universidade de Harvard com 96 mil pacientes e publicado pela
renomada revista britânica The Lancet, na semana passada, mostrou
que usar cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19
não traz nenhum benefício. E pior: aumenta o risco de arritmias
cardíacas e de óbitos.
Quando associada ao antibiótico, a
droga pode ser ainda mais perigosa: a taxa de mortalidade foi a
maior do estudo, de 23%. E, ao contrário do que propagam muitos
apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, a publicação científica
fala da ineficácia quando o tratamento é “iniciado precocemente
após o diagnóstico”.
A pesquisa francesa que listava os
benefícios da hidroxicloroquina combinada ao azitromicina e vinha
sendo bastante citada por quem defende a associação das drogas foi
retirada do ar recentemente pelos próprios autores. Aliás, nesta
quarta-feira (27), França e Itália proibiram o uso da medicação
para tratar Covid-19 e a Bélgica emitiu um alerta contra a
droga.
O tal estudo francês, que nunca foi
publicado em revista científica com revisão por pares, ganhou
repercussão e se popularizou depois de uma publicação da Fox News,
nos Estados Unidos. Foi ele que embasou a campanha
#TeichLiberaCloroquina nas redes sociais pressionando o então
ministro da Saúde, Nelson Teich, a liberar o uso nos tratamentos do
novo coronavírus.
Além disso, em parecer conjunto,
Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Sociedade Brasileira
de Infectologia e Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia
não recomendam, por consenso, o uso da hidroxicloroquina para
tratar o novo coronavírus.
“A polêmica da hidroxicloroquina já
está desvendada. É um medicamento antimalárico, relativamente
seguro, e usado como imunomodulador em algumas doenças autoimunes
como artrite reumatóide e lúpus. Não deve ser endemoniado por essas
indicações, mas infelizmente não se mostrou eficaz contra a
Covid-19. Nós bem que estamos torcendo para que surja uma droga que
impeça a multiplicação viral ou mesmo que reduza os danos causados
pelo novo coronavírus, mas ainda não temos essa alternativa
terapêutica”, reforça Ana Brito, médica infectologista e
pesquisadora da Fiocruz Pernambuco.
A reportagem vem há uma semana
tentando um posicionamento da Hapvida, mas, através de sua
assessoria de imprensa, o grupo disse que não tinha uma resposta
para os questionamentos da reportagem.
Hapvida faz aceno político
Em linha com os anúncios do governo
federal, a indicação de uso da hidroxicloroquina pela Hapvida é um
aceno político de apoio ao presidente Jair Bolsonaro. Com 6 milhões
de usuários, 39 hospitais, 185 clínicas e 42 pronto-atendimentos, o
Sistema Hapvida, que abriu seu capital na bolsa há dois anos, é
quem mais atende brasileiros depois do Sistema Único de Saúde
(SUS).
Ao mesmo tempo em que o Brasil
vivia um aprofundamento do desmonte do SUS e o congelamento dos
gastos com saúde e educação, após o golpe de 2016, a família
Pinheiro expandia seus negócios, de estrutura altamente
verticalizada, com a popularização dos planos de saúde.
Aliás, os cortes do sistema público
de saúde calculados em R$ 20 bilhões vêm colocando em xeque a
capacidade de combate ao vírus, como mostramos em reportagem logo no início
da pandemia.
No final de março, numa reunião por
videoconferência organizada pelo presidente da Federação das
Indústrias de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, um grupo de mega
empresários se prontificou a ajudar o governo federal nas demandas
de saúde. Na presença de ministros (o da Saúde, na época Luís
Henrique Mandetta, não estava), Bolsonaro fez um apelo para que o
setor produtivo do país não pare diante da pandemia.
Entre os participantes estava
Candido Pinheiro, presidente do Conselho de Administração da
Hapvida. O segmento de saúde suplementar faturou R$ 213,5 bilhões
em 2019.
Jorge Pinheiro, presidente da Hapvida
Enquanto as farmácias estão
desabastecidas da hidroxicloroquina para pessoas com lúpus ou
artrite reumatóide, a Fundação Ana Lima, braço social da Hapvida,
fez uma doação da medicação às operadoras do sistema. O presidente
da companhia, Jorge Pinheiro, citado pela Forbes em 2019 como um
dos homens mais ricos do mundo, com um patrimônio de US$ 1,2 bilhão
na época, assegurou haver tratamento com a droga para 20 mil
pessoas. “Mas estamos trabalhando para ampliar essa quantidade”,
adiantou.
A reportagem questionou a Hapvida
sobre com quem e como adquiriu tantas unidades do remédio, já que
ele está em falta nas farmácias. Mas ficamos sem a resposta.
O Sistema Hapvida já investiu mais
de R$ 70 milhões em ações contra o novo coronavírus, com compra de
insumos médicos, equipamentos de proteção individual, materiais,
medicamentos, equipamentos tecnológicos e reforço na
infraestrutura. Também fretou aeronave para distribuir insumos para
sua rede própria em todo o país e fazer o remanejamento de equipes
para as áreas com maior incidência da doença.
Com mais de 400 mil casos e 25 mil
mortes por coronavírus no Brasil, Jorge disse, esta semana,
em teleconferência com
analistas ao comentar uma suposta redução da curva de contaminação:
“Já estamos vendo sinais de que isso pode estar acontecendo em
algumas de nossas regiões de atuação. Estamos muito otimistas de
que o evento pode estar em curva descendente e estamos discutindo
planos de desmoblização de algumas praças”.
A pressão pela polarização
(crédito: Barcroft Media Getty Images)
“A discussão é uma distorção do
ponto de vista científico e da medicina baseada em evidências.
Então me parece que o uso é uma questão muito mais no campo da
política”, avalia Fausto Pereira dos Santos, diretor-presidente da
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) entre os anos 2003 e
2010, durante o governo Lula.
Ele lembra que, a todo tempo, se
polarizou a discussão e se tentou reduzir no Brasil o papel das
evidências, principalmente as internacionais, numa discussão muito
rasa, como se as instituições e os governos de outros países que
adotaram medidas contra a propagação da Covid-19 tivessem uma
atuação contra o governo brasileiro e as ideias que se pregam no
Brasil.
“Isso é uma paranoia, uma
alucinação completa e uma resistência a tudo que se tem feito no
restante do mundo”, critica Fausto.
“O sistema de saúde suplementar
sempre buscou nas discussões internas e na incorporação de novas
medicações a base das evidências. Então é de se estranhar que agora
essas mesmas empresas lancem mão de uma ferramenta ao contrário de
tudo que é discutido dentro do aparato regulatório”,
complementa.
Daniel Dourado, médico, advogado
sanitarista, professor e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em
Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP), pondera ainda
que nenhum desses medicamentos citados no kit da Hapvida têm
registro para tratamento da Covid-19, então, em tese, nem poderiam
fazer parte de um protocolo oficial.
Para ele, isso mostra claramente
que o governo federal está “forçando a mão” e nem todos querem
bancar o custo jurídico e político disso, não à toa que secretários
e dois ministros saíram de seus cargos de chefia da pasta de Saúde,
que segue com um ministro interino.
“De onde foi tirada essa posologia?
Não há evidência nenhuma. É off label, fora de bula”, provoca
Daniel, para quem, no cenário atual de publicações científicas e
posicionamentos de entidades de classe, qualquer incentivo ou
pressão pelo uso da hidroxicloroquina é “muito grave”.
A Marco Zero
Conteúdo também procurou a Associação Brasileira de
Planos de Saúde (Abramge) para repercutir a denúncia, mas a
entidade se restringiu a dizer que vem acompanhando as iniciativas
lideradas pelo Ministério da Saúde e “tem orientado suas associadas
a atuarem em consonância com as melhores práticas de políticas
públicas”.
“É importante lembrar ainda que não
há no mundo uma orientação definitiva para o tratamento de
Covid-19, não existe um protocolo único a ser seguido. A
recomendação do tratamento é uma soberania médica, que leva em
conta o histórico individual de saúde de cada paciente, que tem de
consentir com o mesmo. Todas as alternativas objetivam alcançar o
melhor resultado assistencial e a preservação da vida das pessoas.
A única opção que não é levada em consideração é deixar o paciente
desassistido”, diz a nota.
Atualização
Nesta sexta (29), dia seguinte à
publicação desta matéria, a Hapvida enviou uma nota à reportagem.
Segue o texto na íntegra:
O Sistema de saúde, fundado por um
médico, em seus mais de 40 anos de atuação, sempre respeitou a
soberania médica. O profissional médico é sempre a autoridade
máxima, quando o principal compromisso é salvar vidas.
Prova disso, no que se refere à
prescrição da hidroxicloroquina dentro das nossas unidades, é que
pouco mais que a metade dos pacientes recebeu a medicação por
prescrição médica e consentimento do cliente (55%). Cerca de metade
dos médicos adotou a droga como tratamento, em comum acordo com os
pacientes.
A outra metade dos pacientes não
recebeu, porque não houve prescrição médica (cerca de 45%). Prova
da soberania do médico. O profissional teve total liberdade de
tomar outra condução terapêutica
Nosso corpo médico das emergências
e urgências é formado por 2 mil médicos. Se houve alguma demissão,
seguramente, esse não foi e nem será o fator decisório.
A medicação é doada aos pacientes, que contam com a prescrição como
forma de afiançar o acesso ao tratamento, visto que a medicação não
é mais encontrada à venda nas farmácias das cidades.
A operadora segue determinada no
combate à pandemia, com investimento de mais de 70 milhões de reais
em equipamentos, profissionais e insumos que auxiliem na promoção à
saúde dos pacientes.